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Ortega x Contras: Nicarágua revive os anos 1980

Trabalhadora passa por mural que retrata o líder cubano Fidel Castro (à esquerda) e o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, em Manágua (capital do país) - Meridith Kohut/The New York Times
Trabalhadora passa por mural que retrata o líder cubano Fidel Castro (à esquerda) e o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, em Manágua (capital do país) Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

Frances Robles

Em Nueva Segovia (Nicarágua)

09/03/2016 06h00

Ele chama a si mesmo de Tyson, usa uniformes surrados do Exército norte-americano e carrega um velho rifle AK-47. É um combatente rebelde nas montanhas da Nicarágua, que monta emboscadas contra o governo do presidente Daniel Ortega e tem saudade do tempo em que verbas obscuras do governo norte-americano pagavam pela guerrilha declarada.

Tyson e seus homens são "Contras" --sim, como os dos anos 1980, que receberam fundos ocultos durante o governo Reagan para derrubar o governo sandinista de Ortega, de esquerda.

Aquela guerra terminou há mais de 25 anos, quando Ortega perdeu a eleição. Mas desde que foi reeleito, em 2006, ele passou a governar este país centro-americano de maneira abrangente. Desenvolveu a economia e cunhou novos milionários, mas também enfureceu um amplo leque de adversários que condenam seu rígido controle das eleições, do Congresso, da polícia, dos militares e dos tribunais.

A família Ortega, seus amigos e aliados desfrutam de luxos recém-descobertos, como casas de praia e carros de alto preço. Eles controlam companhias de combustível, estações de televisão e projetos de obras públicas, e abriram um banco em um vasto conglomerado que levou muitos críticos a compararem sua família à dinastia Somoza, de direita, que Ortega ajudou a derrubar em 1979.

E agora os rebeldes prometem fazer o mesmo com ele. "Daniel Ortega não era nada e hoje é dono de metade da Nicarágua", disse Tyson.

Os Contras de hoje, muitas vezes apelidados de "os Rearmados", são uma sombra do que já foram. Eles se queixam de que estão quebrados e dizem que o motivo de não terem mais sucesso é que não recebem ajuda internacional como ocorria durante o governo Reagan, em Washington. Ainda assim, escaramuças em áreas rurais por todo o país, tão recentemente quanto a semana passada, deixaram policiais, civis e soldados mortos, uma violenta expressão da ira mais ampla que ferve contra o governo.

Tyson, um rebelde armado da Nicarágua, fotografado na região de montanhas no norte do país, é integrante do grupo conhecido como Contras, popular nos anos 1980, que faz oposição ao governo de Daniel Ortega - Meridith Kohut/The New York Times - Meridith Kohut/The New York Times
Tyson, um rebelde armado da Nicarágua, fotografado na região de montanhas no norte do país, é integrante do grupo conhecido como Contras, popular nos anos 1980
Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

Embora Ortega goze de amplo apoio entre os pobres, foi muito criticado pelas reformas constitucionais que ampliaram os prazos de mandatos, permitindo que ele dispute um terceiro governo consecutivo este ano. Estudantes, políticos de oposição e outros manifestantes vão ao Conselho Eleitoral toda quarta-feira para protestar contra seu poder de consolidação.

"É uma causa social legítima", disse, sobre os protestos, Gonzalo Carrión, diretor do Centro Nicaraguense para os Direitos Humanos.

O governo nega que ainda existam no país rebeldes com motivação política, apesar dos ataques ocasionais a delegacias de polícia e da morte de sandinistas e de Contras conhecidos. Até mesmo quando uma caravana de sandinistas foi atacada por atiradores depois de uma festa de aniversário em 2014, deixando cinco mortos e 19 feridos, as autoridades acusaram "grupos criminosos" pelo massacre.

"Não há grupos armados neste país", disse no ano passado, segundo várias citações, o chefe do Exército, Julio César Avilés. "Eu já disse isso diversas vezes."

As organizações de direitos humanos acusam as Forças Armadas de uma campanha secreta de assassinatos. No último verão, um homem conhecido como líder rebelde sofreu uma emboscada e foi morto em sua casa. Duas pessoas também foram mortas no ano passado quando uma mochila enviada aos rebeldes por um portador confiável explodiu. O mais famoso líder Contra foi morto em 2011, e seu sucessor foi encontrado cheio de balas em uma vala em Honduras um ano depois.

"É uma guerra suja e silenciosa que não é reconhecida", disse o reverendo Abelardo Mata, um bispo católico que serviu como uma espécie de mediador entre os dois lados. Sem qualquer país apoiando os rebeldes, ele acrescentou, alguns deles "recorreram" a levantar dinheiro trabalhando para organizações do tráfico.

Em um vídeo postado no Facebook no mês passado, um líder rebelde afirmou que pelo menos 45 grupos haviam pegado em armas e atacariam instituições do Estado até que o governo Ortega realizasse eleições justas. Mas outros rebeldes admitem que seu número está diminuindo.

"O Exército está matando pessoas que foram Contras antigamente", disse José N. Rodríguez, 38, que ficou ferido no atentado da mochila. "Eles estão montando operações contra nós retaliando civis. É muito difícil ganhar se eles retaliarem as pessoas."

A Venezuela fornece à Nicarágua milhões de dólares em petróleo por ano em condições preferenciais, e o governo reconhece que grande parte do dinheiro é investida em empresas privadas ligadas à família Ortega e seus aliados.

"Para mim, parece que estão roubando dos venezuelanos", disse Carrión, defensor dos direitos humanos. "Eles não lutaram para ser enganados."

O turbilhão econômico que atinge a Venezuela poderá ser uma ameaça muito maior para os Ortega do que os rebeldes. Mesmo assim, o petróleo que a Nicarágua já recebeu nos últimos anos reformulou a imagem e os estilos de vida dos sandinistas de esquerda que derrubaram uma ditadura nos anos 1970.

"Começamos a ver pessoas na hierarquia do partido dominante comprando carros de luxo e casas de US$ 350 mil (cerca de R$ 1,3 milhão) em dinheiro vivo", disse Octavio Enríquez, um repórter premiado da revista de notícias "Confidencial". "Começamos a ver uma nova classe social."

O chefe do órgão eleitoral, Roberto Rivas, tem uma casa de praia luxuosa com heliponto. A casa foi mostrada no programa de televisão Caçadores de Casas e foi ampliada consideravelmente desde então, relataram canais de notícias. Rivas importou mais de US$ 400 mil (R$ 1,5 milhão) em veículos de luxo em 2009, segundo o jornal de oposição "La Prensa".

Os filhos de Ortega e alguns de seus cônjuges detêm cargos de liderança em estações de TV adquiridas pelo governo em circunstâncias nebulosas. Sua nora dirige a rede nacional de postos de gasolina, que recebe o petróleo da Venezuela. Um dos filhos de Ortega, Laureano, que trabalha para a agência de promoção de investimentos do governo, foi fotografado usando um relógio Rolex de US$ 47 mil (cerca de R$ 176 mil).

O tesoureiro do Partido Sandinista, Francisco López, dirige a empresa de petróleo estatal e uma entidade semipública que distribui contratos para a empresa de sua família construir casas para os pobres, relatou a "Confidencial". Como várias outras autoridades, López não respondeu aos pedidos de entrevista.

O gabinete do presidente não respondeu a diversas solicitações de entrevista. Mas Bayardo Arce, assessor econômico do presidente, que foi um membro original do diretório sandinista durante seu primeiro mandato, rejeitou a questão da riqueza sandinista como uma controvérsia fabricada pela oposição. Arce defendeu o uso do dinheiro do petróleo venezuelano para financiar empresas privadas como uma nova maneira de usar fundos de desenvolvimento internacionais, não mais imprópria que os milhões de dólares em ajuda que os EUA dão a grupos civis da Nicarágua para promover a democracia, os direitos humanos e a governança.

Ele disse que o governo Ortega deve estar fazendo alguma coisa certa. Em janeiro, o Banco Mundial projetou que a economia da Nicarágua cresceria 4,2% em 2016, um dos índices mais altos da América Latina.

"Nossa meta número 1 é tirar este país da pobreza", disse Arce. "Quem decidiu que a pessoa que acredita na justiça social tem de andar descalça?"

Arce, um empresário bem-sucedido, vive em uma bela casa recém-construída em um terreno de quase 5 hectares confiscado durante a guerra.

Embora manifestantes de classe média na cidade e os Contras no campo sejam profundamente céticos da riqueza que gira ao redor de Ortega, pesquisas mostram que o presidente goza de amplo apoio.

Não admira: 38% do petróleo venezuelano é usado para financiar projetos sociais. Mais de 35 mil casas foram distribuídas entre os pobres nos últimos dois anos, segundo o site do governo. Estatísticas do Banco Mundial mostram que o nível de pobreza caiu 6 pontos percentuais de 2005 a 2009.

"Ele pode ter um carro valioso, mas os outros presidentes antes dele tinham luxos, mas não ajudavam os pobres", disse Veronica Aguilar, 55, sobre Ortega.

Os rebeldes não estão de acordo. Em um sinal da nova aliança do governo socialista com as pessoas mais ricas do país, o governo suspendeu os impostos de importação de produtos de luxo como iates e helicópteros.

"Ninguém vai à guerra porque gosta", disse Tyson, o rebelde. "O povo da Nicarágua está sendo roubado."