Amor livre, fuzis e planos de carreira política em um acampamento das Farc na Colômbia
O campo rebelde é uma cápsula do tempo comunista. Um velho guerrilheiro canta canções sobre Che Guevara em seu violão, enquanto as pessoas se aproximam para ouvir, armadas com fuzis e granadas.
Não existem salários aqui, nem mesmo casamento. Os combatentes acreditam no amor livre, dizendo que são casados apenas com a revolução. Eles dizem que a vida ainda é possível com Karl Marx em uma mão e um fuzil Kalashnikov na outra.
"Nós nos preparamos para a paz, mas também estamos prontos para a guerra", disse Samuel, um combatente de 31 anos, que assim como muitos rebeldes, nunca colocou os pés em uma das cidades da Colômbia.
Fui convidado pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ou Farc, para testemunhar este amplo esconderijo na selva para cerca de 150 combatentes, durante aqueles que supostamente seriam seus últimos dias.
A jornada nos levou a cavalo e a pé por montanhas escarpadas, exigiu que abandonássemos nossos telefones por satélite e qualquer equipamento que pudesse ser rastreado pelos soldados do governo, nos colocando nas mãos de um grupo rebelde famoso por sequestrar civis e mantê-los em cativeiro por anos.
Agora, os dois lados estão negociando o fim de décadas de combate, o conflito mais longo na história moderna. Mas o fim não estava à vista naquele dia.
Era por volta de 18 horas quando um comunicado chegou ao acampamento guerrilheiro e a notícia não era boa.
A mensagem, lida em voz alta sob uma tenda, vinha de Rodrigo Londoño, ou Timochenko, como é chamado aqui, o alto comandante das Farc que negocia a paz com o governo após tanta guerra.
As negociações estavam perto do colapso, alertava o comunicado. Os rebeldes deixaram a mesa de negociação furiosos.
A guerra poderia estar novamente no horizonte.
"Pode não haver mais nada além de continuar o que viemos aqui para fazer há 50 anos", concluiu a mensagem, enquanto os combatentes no campo se sobressaltavam e seguravam suas armas mais firmemente.
As negociações de paz colombianas supostamente estão em sua fase final e mais crítica. A guerra matou mais de 220 mil pessoas, deixou 40 mil desaparecidas e deslocou estimados 5,7 milhões. Ela se estende por meio século e frustrou duas tréguas anteriores que visavam trazer uma paz duradoura.
Ambos os lados dizem que o prazo de 23 de maio para um acordo final não será cumprido, deixando pouca certeza por ora.
Após a leitura da carta, um silêncio tomou conta da tenda. Ele foi quebrado por um homem de boina com uma estrela vermelha, que gritou slogans usados pelos guerrilheiros ao longo de todo esse tempo:
"Contra o imperialismo", ele gritou.
"Pela pátria!" respondeu o acampamento.
"Contra a oligarquia", ele gritou.
"Pelo povo!" todos responderam.
Longe de casa
O dia começa aqui uma hora antes do nascer do sol. Às 5h15, os combatentes fazem fila para as tarefas do dia: montar guarda, abater uma vaca. O café da manhã é servido em uma cabana com teto de palha e fogões feitos no chão.
A perspectiva de paz pode ser uma questão nacional na Colômbia, mas é uma muito pessoal neste campo. Os combatentes retornarão aos vilarejos que conheciam? Se reencontrarão com filhos abandonados anos atrás, filhos que agora já são adultos?
Samy tem 28 anos agora, mas tinha 16 quando se tornou guerrilheira.
Como muitos rebeldes, que não usam seus sobrenomes para proteger suas famílias, sua infância está repleta de lembranças de campanhas mortais travadas contra os camponeses pelos grupos paramilitares que caçavam os guerrilheiros. Ela se recorda de seis pessoas mortas a tiros em sua pequena aldeia. Ele decidiu que pegar em armas era a forma de sobreviver.
"Aqui, você forma outra família", ela disse.
De lá para cá, Samy só viu sua mãe uma única vez, durante um breve encontro em um refúgio quando ela tinha 21 anos. As duas mulheres conversaram sobre como Samy era na infância, uma lembrança distante que já quase desapareceu. Samy não planeja voltar para casa se as Farc se desarmarem.
As Farc já controlaram o interior da Colômbia com os lucros do comércio ilícito de cocaína. Mas a determinação do governo e um pacote de ajuda de US$ 10 bilhões dos Estados Unidos colocaram os rebeldes em fuga.
O grupo, listado como organização terrorista pelo Departamento de Estado americano, já contou com cerca de 17 mil combatentes em suas fileiras. Hoje conta com apenas 7 mil.
Muitos aqui no campo ainda são adolescentes. Didier, 15 anos, quase nunca disparou o fuzil que recebeu das Farc quando seu juntou ao grupo há seis meses.
Ele chegou com dois outros adolescentes que fugiram de casa, levados em motos antes do amanhecer por milicianos das Farc de uma pequena cidade portuária ribeirinha. Ele espera que um acordo de paz lhe permita voltar para casa e explicar ao seu pai porque partiu: sua família estava sem comida.
Às 13 horas, o calor se tornou intenso. Os combatentes lavavam roupas e nadavam no rio. Angela, uma jovem de cerca de 18 anos com o apelido de "Pólvora", saiu rindo, trajando a roupa de baixo, para escapar de um grupo de homens jovens e adolescentes que jogavam água nela. Ela pegou seu fuzil Kalashnikov e partiu.
Apesar de não haver casamento aqui, os relacionamentos entre os guerrilheiros são comuns. O homem pede permissão ao seu comandante, assim como muitos colombianos rurais pediriam ao pai pela mão de uma mulher. Quando dois desejam fazer sexo, eles dizem ao comandante e então ingressam na mata, com folhas de palmeiras como cama.
Evolução das esperanças
Para muitos da geração mais velha, os combatentes grisalhos das Farc, o futuro traz a possibilidade de renascimento político. Eles abandonaram a esperança de que a guerrilha algum dia derrubará o governo, como os revolucionários fizeram em Cuba e na Nicarágua. O futuro na Colômbia, segundo eles, virá por meio do ingresso no sistema existente.
"Nós nos livraremos das armas e nos tornaremos políticos", disse Luisito, o segundo em comando no campo. "Mas não perderemos nossa estrutura. Nós estaremos nas urnas desta vez."
As Farc estão preparando seus membros para como será a vida após um acordo de paz. Na maioria das manhãs, os combatentes se reúnem sob a tenda para "pedagogia". Os líderes explicam o acordo que está sendo negociado em Havana e solicitam respostas dos combatentes.
Cartazes pintados à mão reforçam o novo tom: "Em princípio, somos a favor da paz, não da guerra", diz um dos cartazes, pendurado acima de uma fileira de fuzis.
Alguns combatentes querem saber onde viverão após o acordo de paz. Eles poderão permanecer no campo, apenas sem armas? Como a vida será financiada se as Farc não puderem mais cobrar seus "impostos" no interior, como o sobre o lucrativo comércio de coca?
Outros querem saber se os deixarão permanecer vivos.
Um combatente, com nome de guerra Teófilo Panclasta, disse que saiu neste mês de uma prisão colombiana, após cumprir dois anos por acusação de rebelião. Nos anos 80, ele disse, ele participou do maior experimento das Farc em participação política, a União Patriótica, um partido que os guerrilheiros formaram como parte dos acordos de paz da época. O esforço retirou parte das Farc das sombras.
A resposta dos grupos paramilitares foi brutal. Ao todo, cerca de 3.000 membros do partido, de cabos eleitorais a candidatos presidenciais, foram mortos em violência por retaliação.
"Não pensem que isso não pode acontecer de novo", disse Panclasta. "Se abrirmos mão de nossos fuzis, nossas granadas, nossas pistolas, nós só poderemos nos defender com nossas palavras."
Ideias persistentes
Os membros do campo disseram que foram atacados no mês passado, quando se depararam com as forças armadas colombianas a cerca de 50 quilômetros de distância. Oito guerrilheiros foram feridos. Um comandante, Alberto, saltou de um telhado para se proteger. Ele agora manca pelo campo usando muletas.
Mas com maior frequência, os professores chegam com instruções sobre como usar o Facebook e o Twitter, ferramentas que os guerrilheiros consideram vital para o futuro trabalho eleitoral. Há conversa sobre procura por "novos modelos", agora que Cuba chegou à sua própria distensão com os Estados Unidos.
Aldana, um comandante com educação soviética conhecido aqui como "o russo", estava sentado em uma encosta e meditava sobre o colapso do comunismo ter finalmente chegado ao campo. Ele recordou de ter observado o início da mudança décadas atrás, quando ainda era um jovem mochileiro na Alemanha, durante a queda do Muro de Berlim.
"Não tínhamos ideia de que o que significava era que o socialismo estava chegando ao fim", ele disse.
Apesar do modelo poder estar no fim, as Farc permanecerão, ele insistiu. "Estamos buscando a paz, não nos desmobilizando", ele disse. "Estamos simplesmente adotando uma nova forma."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.