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Celular contrabandeado vira esperança de contato entre famílias das Coreias do Norte e do Sul

O desertor norte-coreano Choi Hyun-joon usou o contrabando de celulares para falar com parentes na Coreia do Norte - Jean Chung/The New York Times
O desertor norte-coreano Choi Hyun-joon usou o contrabando de celulares para falar com parentes na Coreia do Norte Imagem: Jean Chung/The New York Times

Choe Sang Hun

Em Seul (Coreia do Sul)

04/04/2016 06h00

Um homem levou de carro Ju Chan Yang até uma montanha com vista para a fronteira da Coreia do Norte com a China. Ele olhou ao redor, para assegurar que estavam sozinhos. Então ele fez uma ligação em seu celular chinês e o passou para ela.

Do outro lado estava o pai de Ju, na Coreia do Sul. Era a primeira vez que ouviam a voz um do outro desde que o pai dela fugiu para lá, dois anos antes.

"Nós mal conversamos por 10 minutos até a ligação cair de repente", disse Ju, 25 anos, descrevendo o episódio de 2009 durante uma recente entrevista. "Meu pai não conseguiu dormir naquela noite, temendo que eu pudesse ter sido pega por soldados norte-coreanos."

Celulares chineses contrabandeados, que permitem aos norte-coreanos próximos da fronteira com a China terem acesso às redes de telefonia móvel, são uma ponte cada vez mais vital entre a Coreia do Norte e o mundo exterior.

Eles conectam os norte-coreanos a parentes que fugiram para o exterior, a maioria para a Coreia do Sul. Os norte-coreanos também fogem de seu país repressivo, como Ju posteriormente fez, por meio de uma operação de contrabando arranjada pelos celulares.

Mas a ponte está se tornando cada vez mais precária sob Kim Jong Un, o líder norte-coreano.

Em 2014, Kim ordenou que seu governo endurecesse os "mosquiteiros" para bloquear a entrada de informações do exterior e impedir seu povo de se comunicar com estrangeiros e fugir. O número de dissidentes norte-coreanos chegando à Coreia do Sul, que já chegou a 2.914 em 2009, despencou para 1.276 no ano passado.

Kim também endureceu a repressão aos celulares contrabandeados da China, empregando mais soldados e dispositivos modernos de vigilância ao longo da fronteira para embaralhar os sinais ou rastreá-los até aqueles que usam os telefones proibidos.

Em um relatório de 57 páginas intitulado "Conexão Negada", a Anistia Internacional disse neste mês que os norte-coreanos pegos fazendo chamadas com os telefones podem enfrentar processos criminais. Se ligarem para alguém na Coreia do Sul ou em outros países considerados inimigos, podem enfrentar acusações de traição, assim como serem enviados para campos de prisioneiros.

"Nada justifica pessoas serem detidas por tentar atender uma necessidade humana básica, falar com seus familiares e amigos", disse Arnold Fang, o autor do relatório, que se apoiou em entrevistas com especialistas e 17 dissidentes da Coreia do Norte.

Ju Chan-yang, que usava celulares traficados para falar com o seu pai na Coreia do Sul até conseguir fugir da Coreia do Norte - Jean Chung/The New York Times - Jean Chung/The New York Times
Ju Chan-yang, que usava celulares traficados para falar com o seu pai na Coreia do Sul até conseguir fugir da Coreia do Norte
Imagem: Jean Chung/The New York Times

A repressão de Kim aos celulares ligados às redes chineses também acentua o risco para aqueles que ajudam a informar o mundo exterior sobre seu país totalitário. Os norte-coreanos usam os celulares para conversar ou enviar mensagens de texto, ou mesmo fotos, para os repórteres e ativistas na Coreia do Sul e outros lugares.

Se forem pegas pelas autoridades do Norte, subornos são virtualmente a única forma de evitar a prisão ou pior.

"Quando minhas fontes me ligam, elas fecham as portas e mantêm alguém de vigia do lado de fora", disse Kang Mi-jin, uma repórter do "Daily NK", um site de notícias com sede em Seul cujo foco é na Coreia do Norte. "Eu lhes digo para terem um lugar onde possam esconder rapidamente o celular e para sempre carregarem dinheiro para o suborno, geralmente 2 mil yuans chineses, sempre. Isso pode ser a diferença entre a vida e a morte."

Graças às suas fontes na Coreia do Norte, Kang, 48 anos, deu algumas das notícias mais comentadas sobre o governo sigiloso de Kim nos últimos anos. Ela foi a primeira a noticiar que a mulher de Kim, Ri Sol Ku, estava grávida em 2012 e que o líder estava mancando em 2014, devido a uma cirurgia no tornozelo.

"As pessoas com quem falo no Norte estão sedentas por notícias de fora, fazendo tantas perguntas para mim quanto eu faço para elas", disse Kang, ela mesma uma dissidente. "Elas querem saber como os dissidentes vivem no Sul, quanto ganha por mês um trabalhador sul-coreano, se é realmente verdade que as donas de casa sul-coreanas têm tantas peças de roupa que descartam algumas."

A Coreia do Norte conta com sua própria rede de telefonia móvel. Iniciada em 2008 como um empreendimento conjunto com a empresa egípcia Orascom, a rede, a Koryolink, conta com mais de 3 milhões de assinantes. Mas ela não permite chamadas internacionais. Para os cidadãos comuns, as chamadas por linhas fixas são monitoradas e a maioria restrita a chamadas domésticas.

O acesso à internet também é restrito aos visitantes estrangeiros e a uma elite seleta. Os norte-coreanos também não podem trocar cartas, e-mails ou chamadas telefônicas com pessoas na Coreia do Sul.

Assim, para os norte-coreanos comuns, virtualmente a única forma de se comunicarem diretamente com pessoas fora do país é viajar até a fronteira com a China e usar celulares contrabandeados.

Os contrabandistas norte-coreanos começaram a usar os celulares durante a fome dos anos 90, para ajudar a trazer ilegalmente alimentos e outros bens da China.

Mas os norte-coreanos que fugiram para o Sul desde a fome também começaram a contratar os contrabandistas para envio de celulares chineses e cartões SIM para os parentes que deixaram para trás. Os dissidentes e a Anistia Internacional disseram que o comércio ilícito de celulares chineses no Norte está crescendo.

Em 2008, Choi Hyun Joon, 51, um dissidente norte-coreano em Seul, contratou um intermediário na China. O intermediário ligou para o contato dele na Coreia do Norte por seu celular chinês e lhe pediu para encontrar a filha de Choi, Choi Ji Woo, em Pyongyang, a capital norte-coreana.

O intermediário levou dois meses para levar a filha dele até a fronteira para que pudesse falar por telefone com Choi. Ele primeiro precisou forjar uma permissão de viagem para ela; na Coreia do Norte, a viagem de uma cidade a outra é altamente monitorada.

Posteriormente, Choi conseguiu transferir para sua filha 8 milhões de wons, ou US$ 6.700 (cerca de R$ 24.300), em uma transação que só foi possível graças ao celular chinês. Todo ano, os dissidentes na Coreia do Sul enviam milhões de dólares para suas famílias na Coreia do Norte por intermediários chineses e norte-coreanos, que usam os celulares chineses para arranjar as transações.

Quando o dinheiro chegou até ela, a soma estava reduzida pela metade, com o restante deduzido como taxas para os intermediários.

"Você perde 30% a 50% do dinheiro, mas ainda assim é a única forma de enviar dinheiro para nossos entes queridos", disse Choi, que conseguiu tirar sua filha do país em 2010.

Ju se recordou do dia em que os intermediários contratados pelo seu pai apareceram em um restaurante para trabalhadores em Chongjin, uma cidade portuária no nordeste da Coreia do Norte, onde ela trabalhava em 2009.

Ele mostrou discretamente a Ju uma palavra de código que apenas ela e seu pai sabiam, uma combinação dos nomes dela e de sua mãe.

"Eu sabia que podia confiar nele", disse Ju. "Ele disse que eu deveria ir até a fronteira para fazer uma ligação para meus pais no Sul."

Em meados de 2010, o pai dela ligou para ela na fronteira chinesa pela última vez. Lá, ela foi entregue a um guarda norte-coreano que fazia parte da operação de contrabando. Ele a ajudou a cruzar a nado um rio, que estava cheio devido às chuvas, até a China. Assim que chegou lá, ele usou seu celular para ligar para outro intermediário vir buscá-la e pagar sua taxa.

"O soldado tinha seu celular chinês envolto em plástico e entre seus dentes enquanto cruzava o rio a nado", disse Ju, que chegou à Coreia do Sul em 2011. "O celular é o que liga a Coreia do Norte ao mundo exterior."