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Autoridades gastam muito na Olimpíada, mas moradores do Rio estão pagando o preço

A cerimônia de abertura da Olimpíada é vista em TV de um bar na Mangueira, no Rio - Mauricio Lima/The New York Times
A cerimônia de abertura da Olimpíada é vista em TV de um bar na Mangueira, no Rio Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Michael Powell

No Rio de Janeiro

16/08/2016 06h02

A mil quilômetros metafísicos da abastada zona olímpica, alguns ativistas e eu entramos na favela do Mandela, um conjunto depauperado de construções de tijolos e papelão. Caminhamos por uma rua cercada por rapazes de olhar desconfiado, que levava a uma mais estreita, que levava a um beco de 1,5 metro. Encontramos a casa de Maria Auxiliadora, 64 anos.

Com os cabelos louros puxados para trás, ela era uma minúscula erupção de felicidade. Pediu desculpas pela casa modesta, que era muito limpa e coberta de crucifixos, flores plásticas e cortinas pastel. Ela usava um vestido leve e chinelos cor-de-rosa.

Apesar de um tiroteio de manhã que a obrigou a se esconder no quarto, ela insistiu que teve uma boa vida. Contou que tem quatro filhos adultos lindos, graças a Deus. Em sua televisão, assistimos aos protestos contra a tocha olímpica na véspera do início da Olimpíada.

Ela franziu os lábios e pousou a mão no peito.

"Estou tão preocupada", disse. Seus olhos ficaram avermelhados. "Não recebo minha aposentadoria há um mês. Nossos hospitais e escolas estão falidos. Há tiros todos os dias, e eles gastam o nosso dinheiro nessa Olimpíada. Os ricos jogam, e nós morremos."

Vista dos bairros norte e oeste do Rio, que se espalham para o interior da verde floresta da Tijuca e da cadeia de montanhas costeira, a Olimpíada habita um mundo estrangeiro e rico.

Em dois dias de perambulação pelas favelas e bairros de trabalhadores, encontrei o entusiasmo olímpico muitas vezes apagado. Grafites e sinais estendidos nos muros por ativistas documentam o enorme custo dos Jogos de 2016 em uma cidade ferida. Os portadores da tocha olímpica correram por vários bairros de trabalhadores e saíram às pressas, caçados por moradores irritados. A indignação não é difícil de compreender.

Empreiteiros bilionários e magnatas da mídia ganharam uma fortuna com a Olimpíada; as investigações de corrupção e propinas que surgem destes Jogos são uma indústria crescente, com construtoras e centenas de congressistas potencialmente envolvidos.

Um metrô extremamente caro foi construído para percorrer a rica costa sul da cidade, de Copacabana até o local da Olimpíada. Uma floresta de prédios para abrigar os atletas se ergueu em terreno público; depois a empreiteira irá transformá-los em moradias de luxo. Na estrada do aeroporto internacional até a zona sul, os organizadores da Olimpíada colocaram muros coloridos para que os visitantes não vejam as favelas.

O chefe do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach, proclamou os Jogos do Rio um grande sucesso, na semana passada. Eu me perguntei sobre a qualidade de seus olhos.

5.ago.2016 - Geovane Prince tem um estúdio de fotografia na favela do Mandela, no Rio - Lalo de Almeida/The New York Times - Lalo de Almeida/The New York Times
Geovane Prince tem um estúdio de fotografia na favela do Mandela, no Rio
Imagem: Lalo de Almeida/The New York Times

Escrever sobre sofrimento não diminui em nada os brasileiros, que são anfitriões graciosos e torcedores exuberantes, lotando a praia de Copacabana para ver o vôlei de praia. A grande conquista atlética é inspiradora, e estes atletas, os maiores do mundo, merecem aplausos. Mas a avaliação praticada pelo COI nas cidades --a exigência de que as autoridades locais construam estádios e centros de imprensa obscenamente caros e garantam zonas turísticas livres de pobres-- raramente pareceu mais problemática.

O Rio está praticamente falido. Os professores não recebem pagamento há meses. Os aposentados também. Os professores universitários se reúnem para limpar pisos e esvaziar as latas de lixo lotadas.

Eu falei com o administrador de um hospital em um bairro da zona norte, que me pediu para não citar seu nome por medo de perder o emprego. As autoridades o haviam instruído, segundo ele, a reservar leitos nos pavilhões lotados e remédios difíceis de obter, como pílulas para pressão sanguínea, para os turistas olímpicos. Seu hospital recebeu uma nova ambulância para servir à Olimpíada.

Viajei nesse dia na companhia de Anderson França, um ativista, escritor e pesquisador forte e barbado, e sua mulher, Suelen Masiero. Anderson vê a cobrança de uma conta por décadas de negligência.

"De certa forma, a Olimpíada merece parabéns", disse ele. "As contradições desta cidade estão aparecendo mais depressa e com mais dramaticidade."

Mais tarde, faremos a pergunta da Olimpíada a Geovane Prince, um fotógrafo musculoso e tatuado na favela Mandela. Ele criou um estúdio próspero e viaja pela cidade. Balança a cabeça antes que eu faça a pergunta.

"Toda a corrupção, o sofrimento, há dor demais", disse. "Nós protestamos. Manter arenas gigantes na zona rica? Estamos cansados de investir nisso."

A violência é um caldeirão que continua fervendo e não pode ser separado dessa antipatia olímpica. Antes da Copa do Mundo de 2014 e agora na Olimpíada a polícia e os militares invadiram sob a mira de rifles semiautomáticos e carros blindados centenas de favelas, em uma brutal campanha de pacificação. Os homicídios caíram de modo significativo, mas cresceram novamente este ano.

A cidade de Nova York registrou 350 assassinatos em 2015; o Estado do Rio de Janeiro, que tem aproximadamente o dobro da população de Nova York, teve 461 assassinatos só em abril de 2016.

A polícia foi responsável por um quinto de todos os assassinatos no Rio no ano passado, segundo a HRW (Human Rights Watch) e a Anistia Internacional, organizações de defesa dos direitos humanos.

Às 8h30 num dia da semana passada, viajamos em direção à favela do Complexo do Alemão, que se estende por quatro morros. Paramos em um farol de trânsito. Estalidos, estouros. Inclino a cabeça; pareciam fogos de artifício, mas não, na verdade. O motorista do carro ao lado revirou os olhos. Os paramilitares e os bandos de traficantes, disse ele pela janela aberta, estão atirando cedo hoje.

"Você vê aquele morro?", disse França, o meu guia nesse dia, apontando para uma serra verde. Casas em mau estado subiam pelas encostas; acima, o céu azul. Eram os morros da Mercê. "Encontraram uma cova com dezenas de corpos. Sem nomes."

Falei depois com uma mulher, dona de uma modesta mercearia em outra encosta dessa favela. Ela embalava nos braços sua neta bebê. "Ninguém pode nem se reunir para ver um jogo", disse ela. "A ocupação é perigosa demais."

Sua observação foi repetida diversas vezes. Os moradores querem paz, mas não têm interesse especial pelo Exército, os traficantes ou os paramilitares compostos por policiais aposentados: todos os Exércitos são mortíferos.

Subimos uma trilha íngreme até a nova delegacia de polícia que domina o morro como um castelo medieval. Lá dentro, três policiais com trajes blindados confirmaram com temor.

Apontaram para três buracos de balas nas janelas de vidro da delegacia, cada uma do tamanho de uma bola de pingue-pongue: a polícia ataca e os bandos contra-atacam. A parede da delegacia era dominada pela pintura de um cavaleiro ajoelhado, segurando uma espada, acompanhada destas palavras: "Você pode morrer, mas se não lutar já está morto".

O comandante da delegacia chegou, com um rifle semiautomático atravessado no peito. "Vocês não devem ficar aqui. Voltem para a Olimpíada", disse. "O tiroteio não para."

5.ago.2016 - Casas no bairro de Manguinhos foram parcialmente demolidas para dar lugar à construção de uma nova linha de trem no Rio - Lalo de Almeida/The New York Times - Lalo de Almeida/The New York Times
Casas no bairro de Manguinhos foram parcialmente demolidas para dar lugar à construção de uma nova linha de trem
Imagem: Lalo de Almeida/The New York Times

As autoridades cortaram várias linhas de ônibus que percorriam de norte a sul durante os Jogos, na esperança de impedir que os bandos invadam as zonas turísticas de Copacabana e Ipanema e o bairro empresarial no centro. Dezenas de milhares de cariocas da classe trabalhadora passam de duas a três horas no transporte até seus empregos, jornadas que se tornam muito mais árduas durante os Jogos. A mãe de Anderson mora em uma favela. Ela tem mais de 90 anos e nunca visitou as praias de areia branca de Copacabana e Ipanema.

O diretor de segurança pública da cidade fala sobre o desastre que poderá ocorrer quando a Olimpíada terminar e os soldados saírem das zonas turísticas.

No dia seguinte, falei com Carla Maria Avesani, jovem professora na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ela tem doutorado e dirige um instituto de nutrição na Universidade do Rio de Janeiro, serve no conselho de um prestigioso jornal e escreve para um público internacional de acadêmicos. Avesani estuda como as mudanças na dieta ajudam os pacientes pobres em diálise e os que têm problemas cardíacos. Seu sonho era trabalhar em uma universidade pública com uma missão.

Agora ela e seus colegas professores juntam seus reais para comprar computadores e toalhas de papel e consertar portas. Eles tentam descobrir o que fazer com o elevador quebrado. Sua universidade está falida, com os bolsos virados do avesso.

Ela mora em um bairro de classe média alta, com bons restaurantes e um clima de Mediterrâneo. O ambiente à noite, com jovens casais de mãos dadas, lembra Roma, exceto pelos enormes rochedos e o mar a seus pés. Ela assistiu à cerimônia de abertura, com as brilhantes coreografias, e leu as postagens orgulhosas de seus amigos no Facebook.

Mas não pode unir-se a eles.

"Foi uma linda festa; nós, brasileiros, fazemos lindas festas", disse Avesani. "Mas ao ver a quantia de dinheiro gasto em estádios idiotas, não quero comemorar quando o Estado está quebrado, os hospitais são fechados e os pobres morrem aos milhares."

Ela fez uma pausa. "É bom ver tantos estrangeiros, e eu quero que você seja feliz. Eu quero ser feliz. "

Ela suspirou. "Eu ficaria contente se o mundo visse como estamos vivendo. Sinto-me absolutamente ofendida por essa Olimpíada."