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Medo, ceticismo e também esperança: o que os sírios sentem sobre o cessar-fogo

Raio-X da ONU analisa Guerra na Síria após 5 anos de conflitos

UOL Notícias

Anne Barnard e Hwaida Saad*

Em Beirute (Líbano)

13/09/2016 12h42

O momento do cessar-fogo na Síria, negociado pelos EUA e pela Rússia, é cheio de simbolismo. Ele entrou em vigor ao anoitecer de segunda-feira (12), coincidindo com o Eid al-Adha, o Banquete do Sacrifício.

O feriado comemora a disposição de Abraão a sacrificar seu filho a Deus, uma narrativa central das religiões muçulmana, cristã e judaica e uma metáfora literária recorrente em muitas culturas para o sacrifício dos jovens nas guerras de seus pais e avós.

Os muçulmanos praticantes sacrificam carneiros no feriado, com frequência em público, e muitos sírios manifestaram nesta segunda-feira sentimentos dúbios ao ver o sangue dos animais correr pela sarjeta em tempos de chacina humana. Durante o fim de semana, a guerra aérea do governo sírio apoiado pela Rússia matou quase cem pessoas, morteiros rebeldes caíram sobre várias áreas detidas pelo governo e insurgentes no sul declararam uma nova ofensiva.

Não está claro o nível de compromisso dos combatentes sírios com um plano complexo, em várias etapas, que foi negociado sem sua participação.

Estes são os termos do acordo: todos os ataques cessarão, exceto os desferidos contra o Estado Islâmico e grupos ligados à Al Qaeda. Mas o público não sabe o que a Rússia e os EUA definiram como território desses grupos, e há uma profunda desconfiança.

13.set.2016 - Sírio anda de bicicleta com crianças na cidade de Qamishli, no nordeste da Síria, no primeiro dia do cessar-fogo acertado entre o governo, a Rússia e os EUA - Delil Souleiman/AFP - Delil Souleiman/AFP
13.set.2016 - Sírio anda de bicicleta com crianças na cidade de Qamishli, no nordeste do país
Imagem: Delil Souleiman/AFP

Se a calma relativa durar sete dias, os EUA deverão começar a se coordenar com a Rússia para visar as forças do EI e da Al Qaeda. Em troca, a Rússia deverá garantir que aviões de guerra do governo sírio não sobrevoem áreas da oposição.

Nos próximos dias, acompanharemos as experiências e observações de pessoas em muitas partes da Síria, conforme a trégua modifica, ou não, suas vidas.

Guerra na Síria já provocou mais de 300 mil mortes desde 2011

AFP

"Podemos ser mortos"

MOADHAMIYEH (território em posse dos rebeldes) -- Este subúrbio fica a menos de 4 km do centro de Damasco e passou pelo pior da guerra: anos de sítio e penúria, com tréguas intermitentes com o governo do presidente Bashar al Assad. Foi uma das áreas atingidas por armas químicas em agosto de 2013. Agora, ocorrem negociações tensas para uma rendição sob a qual os rebeldes e os civis escolheriam ir para áreas dominadas pelo governo ou ser levados para áreas controladas por rebeldes no norte.

Dani Qappani, 28, formou-se em literatura inglesa na Universidade de Damasco em 2011, o primeiro ano da revolta. Ele se tornou um ativista contra o governo na mídia, postando vídeos.

Qappani escreve poemas e os publica junto com suas opiniões e notícias políticas no Facebook. Ele está preocupado com as divisões na cidade, entre os que querem aceitar a reconciliação com o governo e outros, como ele, que não querem. Moadhamiyeh não foi bombardeada nos últimos meses, mas a ameaça está sempre presente. Eis como ele descreveu a situação em um bate-papo online:

"Eles nos ameaçam de vez em quando e dizem que atacarão a cidade se não aceitarmos qualquer coisa que eles queiram de nós. Toda a população de Moadhamiyeh está agitada e conversa sobre a evacuação hoje em dia, para não falar nos agentes do regime, os problemas que eles causam. Em suma, não é mais seguro para mim e para as pessoas que rejeitam a reconciliação. Podemos ser mortos."

Ele marcou o feriado, gravemente, com esta postagem no Facebook:

"e eles se reuniram como carneiros na frente da guilhotina".

E descreveu suas expectativas para o cessar-fogo em uma conversa:

"O cessar-fogo não fará diferença alguma, porque a crise não gira em torno só dos ataques. É sobre as milícias de Assad, o Iraque, o Irã, etc. É sobre as forças de segurança de Assad... é sobre Assad."

Cético, mas desejando a paz

DAMASCO (território em mãos do governo) -- Na capital síria, a vida é relativamente normal --relativamente. Morteiros ocasionais lançados por rebeldes dos subúrbios diminuem conforme o governo avança e evacua bolsões de combatentes que resistem. Bares e restaurantes estão abertos, mas há uma grande tensão econômica. Há postos de controle por toda a cidade, e muitos homens fugiram para não ser recrutados pelo Exército.

Khaled Khalifa, 52, é um autor conhecido por seu romance "Elogio do Ódio", sobre o levante da Irmandade Muçulmana em 1982 e a queda do governo. Nas horas sombrias da manhã de segunda-feira (12), ele postou em sua página pública no Facebook seus planos para o Eid.

"De volta a Damasco. Aqui estou, tudo é triste, até a calçada de pedras."

Ele conversou online, algum tempo depois, com a sucursal de "The New York Times" em Beirute sobre seus planos para o Eid:

"Nada de Eid aqui. E minha família está tão longe. Minha família está em Aleppo, é muito triste. Eles estão dos dois lados [da cidade dividida]. Mas não querem sair. Vou apenas telefonar para eles e ler. E talvez à noite eu vá a um bar sozinho. Ou com alguns amigos. Estou lendo uma biografia de Virginia Woolf, escrita por seu sobrinho, Quentin Bell. E recentemente terminei um livro sobre Dostoiévski.

"Aqui as pessoas não acreditam em nada. Mas estão sempre esperando pela paz."

"São um bando de criminosos"

BINNISH, província de Idlib (território controlado por rebeldes) -- Esta província no norte foi a segunda a sair do controle do governo, no início de 2015. Ela é dominada por grupos que vão da Frente de Conquista do Levante, até recentemente chamada de Frente al Nusra e oficialmente afiliada à Al Qaeda, a grupos islâmicos maiores e grupos rebeldes aprovados pelos EUA. Idlib sofreu intensos bombardeios na guerra aérea apoiada pelo governo russo. No fim de semana, dezenas de pessoas foram mortas em um ataque aéreo a um mercado na capital da província.

Muhammed Najdat Kaddour esteve lá para filmar o resultado e entrevistar sobreviventes. Ele tem 31 anos e é formado em economia, uniu-se aos protestos desde o início e tornou-se um ativista na mídia contra o governo. Em uma entrevista por telefone na segunda-feira, ele descreveu uma comemoração local do Eid, falou sobre seu pessimismo em relação ao cessar-fogo e sua desconfiança de Assad e do presidente russo, Vladimir Putin:

"Você acredita que há algo chamado trégua? Pensa que eles falam sério? Se Putin não fosse um bastardo ele não teria assumido o lado de Assad. São todos um bando de criminosos.

"Nós organizamos uma comemoração especial para os filhos dos mártires. Fizemos toda a comemoração no porão. Estávamos preocupados com os ataques aleatórios. Imagine, você podia escutar o som das orações pelo Eid em Binnih e Fouaa, seguido do ruído das bombas. Os sons eram muito claros."

*Anne Barnard é chefe da sucursal em Beirute e cobre a guerra na Síria; Maher Samaan contribuiu com reportagem, de Paris.