Análise: No debate nos EUA, Hillary Clinton mostra quem realmente é
Já ouvi tantas vezes Hillary Clinton contar a história de seu pai e sua firma de tecidos que consigo pronunciar a palavra "squeegee" [rodo] no exato segundo em que ela sai de sua boca.
"Ele pegava uma serigrafia, espalhava a tinta, pegava o rodo e não parava", diz ela, sempre.
Por isso eu tive a sensação de que na segunda-feira (26) à noite ela não via a hora de puxar aquele rodo sobre Donald Trump.
Nos primeiros minutos do primeiro debate presidencial, Hillary mencionou seu pai, comparando sua criação na classe média com a infância dourada de Trump e sugerindo que ele teria sufocado os donos de pequenas empresas como o pai dela.
"Só posso dizer que certamente estou aliviada que meu falecido pai nunca tenha feito negócios com você", disse Hillary.
Ela foi alvo de zombaria por sua falta de jeito ao dançar "Whip/Nae Nae" no programa de Ellen DeGeneres; por sua frieza ao receber golpes de Zach Galifianakis no programa "Between Two Ferns"; por estar rodeada de assessores e seguranças ao visitar a Feira Estadual de Iowa.
Mas no palco do debate Hillary parece totalmente ela mesma.
Durante estes anos em que a acompanhei, examinei cada palavra da candidata em quase 30 debates e fóruns, e é nesses formatos que ela costuma mostrar --às vezes sem pretender-- os mais genuínos vislumbres de quem realmente é.
Hillary já exibiu seu humor mordaz (quando brincou em 2008 que estava usando um terno de "amianto") e se fez de vítima. ("Talvez devamos perguntar a Barack se ele está confortável e precisa de outro travesseiro", disse ela em outro debate nas primárias de 2008, referindo-se a uma aparição em "Saturday Night Live" em que os moderadores do debate afagaram Barack Obama.)
Todos esses debates levaram a este: a primeira incursão de Hillary no palco da eleição geral. A noite não deu a ela o comentário sarcástico que entra nos livros de história, ou o momento emotivo, implanejável, que convenceria um eleitorado cético de que ela é confiável, mas deu aos eleitores uma janela para quem Hillary realmente é. Ela exibiu seu preparo e sua inteligência rápida, sua afeição por detalhes de políticas e sua avidez por projetar chamas e inverter o script contra seu adversário, famoso pela combatividade.
"Tenho a sensação de que até o fim desta noite serei acusada por tudo o que já aconteceu", disse Hillary secamente na segunda-feira, depois que Trump disse que ela havia lutado contra o Estado Islâmico (fundado por volta de 2014) durante toda a sua vida adulta.
"Por que não?", Trump retrucou.
Ela mostrou um lado beligerante: "Bem, Donald, sei que você vive em sua própria realidade", disse logo no início.
E abordou políticas em detalhes, com grande facilidade.
Quando Trump fez um discurso apaixonado, embora inespecífico, sobre trazer empregos de volta do México e da China, Hillary explicou seu plano de distribuição de lucros. Quando a conversa virou para a política externa, ela deslizou simplesmente para um jargão diplomático, prometendo "tirar o EI de Raqqa" para "acabar com sua ideia de ser um califado".
Hillary deu apenas vislumbres passageiros de um lado mais pessoal: abriu a noite mencionando o segundo aniversário de sua neta Charlotte.
Quando Trump a interrompeu, ela mostrou laivos da calma de aço que exibiu durante mais de oito horas de depoimento a um painel da Câmara liderado por republicanos. Ela espetou Trump chamando-o de "Donald".
Assessores da campanha me disseram que o debate foi um dos únicos formatos que permitiriam que os eleitores --e os repórteres que acompanham a candidata-- pegassem uma visão não filtrada de uma Hillary tão cautelosa que até os detalhes pessoais mais inócuos (seus programas de TV preferidos, por exemplo) podem parecer estudados demais, e, em consequência, surgirem como inventados.
Na segunda à tarde, enquanto assessores de campanha tipicamente ansiosos se agitavam pelo campus da Universidade Hofstra, tentei extrair detalhes do que Hillary fez na manhã do debate para lidar com o estresse.
Por exemplo, eu disse a assessores dela que eu faço "hot yoga" com música hip-hop em um quarto aquecido e bebo dois uísques com gelo. "Hillary passeava com seus cachorros? Fazia ioga? Ela e Bill mergulham nas panquecas com mirtilo como tradição nas manhãs de debate?", perguntei.
"Não somos esse tipo de campanha", disse-me um porta-voz.
Isto torna os momentos livres no palco de debates --uma ida ao banheiro; uma resposta engraçada; um raro momento de autorreflexão-- importantes para compreender Hillary Clinton.
Ela não tem as habilidades de política de varejo de seu marido, o ex-presidente Bill Clinton, que estava sentado na primeira fila na segunda-feira. E não faz discursos com a oratória abrangente do presidente Barack Obama. Mas desde que Hillary Rodham teve um papel de estrela na equipe de debates de seu colégio ela parece gostar do confronto formal do palco de debates.
Seu primeiro debate em eleição geral, e o primeiro com uma mulher candidata por um grande partido, deu a Hillary 90 minutos sem intervalos comerciais. Isso quis dizer que ela, que se preparou durante semanas, estava por sua própria conta, sem os conselhos de assessores ou pausas para avaliar como uma resposta soaria para seu maior público até hoje.
Ela tentou ajudar essa imensa audiência de TV a compreender melhor quem ela é, apropriando-se de sua imagem às vezes ridicularizada como a estudante "c.d.f." que passara a noite na biblioteca.
"Acho que Donald Trump acaba de me criticar por preparar-me para este debate", disse ela. "Sim, eu me preparei. Sabem para que mais eu me preparei? Preparei-me para ser presidente, e isso é bom."
Eu assisti durante anos como Hillary Clinton andou no limite entre apresentar-se como uma funcionária pública conduzida por sua fé metodista e as manobras políticas sagazes necessárias para ser a primeira mulher a conseguir a nomeação democrata para presidente.
Na segunda, Hillary tentou defender uma tese afirmativa por sua candidatura enquanto demonstrava tranquilidade --e até prazer-- enquanto se referia a uma extensa pesquisa sobre Trump que ela havia cimentado em sua memória em semanas de ensaios.
Hillary contou histórias de pessoas que disseram ter sido enganadas por Trump, apontando para um arquiteto na plateia que disse que nunca foi pago pelo projeto de uma sala de jogos em uma propriedade de Trump. E quando surgiu o tema da raça Hillary pareceu ávida por citar uma reportagem que tinha lido.
"Lembrem-se, Donald começou sua carreira em 1973 sendo processado pelo Departamento de Justiça por discriminação racial, porque não alugava apartamentos para afro-americanos em um de seus imóveis", disse ela.
Enquanto isso, Trump não se esforçava nos detalhes. "Nós gastamos US$ 6 trilhões no Oriente Médio, segundo uma reportagem que acabo de ver", disse ele a certa altura. "São 6 ou 5, mas parecem 6, US$ 6 trilhões no Oriente Médio."
No final do debate, quando Trump atacou a disposição física de Hillary, ela pareceu mais enérgica que nunca, usando pela última vez o tesouro de pesquisa da oposição: "Este é um homem que chamou mulheres de porcas, bagulhos e cachorras", disse.
Com seu adversário encostado às cordas, ela sorriu, como que para indicar que estava apenas começando.
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