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Leis que regem propriedade não devem se aplicar a meio ambiente

Eliana Calmon

Especial para o UOL

16/03/2014 06h00

Até meados do século 20, só era possível se falar em proteção jurídico-estatal dos direitos passíveis de apropriação e identificação, cujo titular estivesse identificado, sendo o direito delimitado.

Sobre esse enfoque construiu-se toda a ordem jurídica, estruturou-se o Poder Judiciário e a teoria geral do processo ou das normas instrumentais, veículo para se chegar ao Estado-juiz.

De um lado, tínhamos os chamados interesses individuais ou privados, defendidos pelos seus titulares. Do outro lado, tínhamos os interesses públicos secundários, defendidos pelo Estado.

Responsabilidade

Sobre os recursos naturais e os bens ambientais há uma espécie de hipoteca social, traduzida no entendimento de que não se pode deles dispor ao seu bel-prazer

Entretanto, entre uns e outros, identificou-se uma zona cinzenta, um verdadeiro fosso que permanecia fora do alcance da proteção estatal, representado pelos interesses públicos primários que, não sendo de ninguém especificamente, eram do interesse de todos ou de um grupo considerável de pessoas. Mas que interesses são esses? São os interesses difusos e coletivos.

Em um primeiro plano, temos os recursos naturais, colocados à disposição do homem sem a sua participação: o ar, a água, o solo, a biosfera, etc.

Em um segundo momento, foi introduzida uma série de bens culturais e históricos que se incluem entre os recursos ambientais – meio ambiental ou humano associado ao patrimônio natural.

Temos, então, na representação dos interesses públicos primários: os bens e interesses naturais, acrescidos dos bens e interesses ambientais - condições produzidas pelo homem que afetam a existência planetária.

A partir da consciência da limitação dos recursos naturais e da necessidade de utilização ordenada desses recursos, volta-se a preocupação para o coletivo. E a solidariedade surge como ingrediente indispensável à manutenção dos bens a proteger.

Preservação

Os direitos humanos decorrem de um único fundamento: a vida, sendo o meio ambiente uma extensão do direito à vida

Quebra-se o paradigma da individualidade, que pode ser verbalizada pela tradicional ideia de “eu ocupo, logo é meu. E como é meu, faço o que bem entendo”.

Surge, então, a preocupação com o chamado ecossistema (recursos naturais mais recursos ambientais), de onde vem a ideia de que, sobre os recursos naturais e os bens ambientais, há uma espécie de hipoteca social, traduzida no entendimento de que não se pode deles dispor ao seu bel-prazer, pois os interesses maiores e mais amplos são os da comunidade.

Direito e meio ambiente

A visão do meio ambiente como bem passível de tutela jurídica é, portanto, recente e surgiu em decorrência das graves consequências da degradação predadora dos recursos naturais e também da evolução na conquista dos direitos humanos com garantias nacionais e internacionais. Pergunta-se, então: qual a natureza jurídica dos direitos humanos? Duas ideias levam a visões distintas:

Pela visão de Norberto Bobbio, têm os direitos humanos caráter heterogêneo, histórico e dinâmico, porque construídos a partir dos fatos e das mudanças sociais. Daí a sua relativização, visto que nascem na sociedade e a ela se dirigem. Ao final, conclui o notável professor que os direitos humanos não são direitos propriamente, mas embriões para futuros direitos.

Proteção

A visão do meio ambiente como bem passível de tutela jurídica é recente e surgiu em decorrência das consequências da degradação predadora dos recursos naturais

Na visão do jurista brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, os direitos humanos decorrem de um único fundamento: a vida, sendo o meio ambiente uma extensão do direito à vida. Assim, quando se fala em garantia ao direito ambiental estar-se-á a falar em garantia à vida digna e, por conseguinte, ao direito ao desenvolvimento.

Aderindo-se a uma ou a outra posição, o certo é que hoje o meio ambiente é considerado como direito fundamental e, em complementação, dever fundamental, ou seja, liberdade e responsabilidade.

Duas questões são colocadas, a partir da caracterização do direito ambiental no rol dos direitos humanos:

A primeira diz respeito à figura do homem integrado à natureza como mais um componente, o que levaria a se pensar que a natureza seria um sujeito de direito com valor intrínseco, não se podendo falar em hierarquia entre o ser humano e os demais seres vivos. Afinal, tudo na natureza é de igual valor.

A visão em contrário levaria a negar-se a natureza como ente autônomo. Estaria ela limitada a sua relação com o homem, sem valor intrínseco, cuja proteção só se justifica pela necessidade de proteção à vida humana?

Sustentabilidade

Quando se fala em garantia ao direito ambiental fala-se em garantia à vida digna e, por conseguinte, ao direito ao desenvolvimento

A segunda questão diz respeito à colocação do direito ao meio ambiente. Estaria ele, ao lado de outros direitos da mesma categoria, como, por exemplo, o direito à propriedade privada?

Na pós-modernidade, o meio ambiente surge como nova instituição, como realidade dinâmica e mutante - reconhecido, em 1972, quando da realização da Conferência da Nações Unidas, em Estocolmo, visão referendada por ocasião da Rio 92, no Rio de Janeiro. Isto é o bastante para colocá-lo em posição diversa do direito de propriedade.

Hoje, o que se pretende é falar de meio ambiente como a ética da vida moderna porque a preservação da sustentabilidade do planeta, da sociedade, dos nossos usos e costumes é condição indispensável à nossa sobrevivência e ao equilíbrio das nossas vidas. Afinal, sustentabilidade é equilíbrio.

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