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Ao não punir mau serviço, São Paulo protege empresas de ônibus em edital

Especial para o UOL

05/10/2015 06h00

Enquanto se debate a velocidade nas marginais, a legalidade do Uber, a proibição de carros na avenida Paulista em certos dias e a faixa adicional para pedestres, está para ser decidida a versão final do edital de concorrência para a contratação dos serviços de ônibus da cidade de São Paulo. Seu valor estimado é de R$ 140 bilhões nos 40 anos que podem durar os contratos.

O edital finalmente reintroduz o pagamento do serviço pelos custos e não mais por passageiro transportado, fórmula que gerou vultosos lucros para as empresas, conforme auditoria recente. Mas, apresenta erros e equívocos inaceitáveis, inclusive nessa nova forma de remuneração.

Assim, apresenta uma fórmula de pagamento das empresas calculada com base nos custos operacionais multiplicados pelo que chama de IQ (Índice de Qualidade). Mas, esse índice, conforme descrito no edital, não mede a qualidade do serviço prestado. Apenas verifica se o contrato está sendo cumprido em termos de número de ônibus e de viagens realizadas. Isso não é qualidade de serviço, é mero cumprimento do que foi contratado.

Medir a qualidade seria, por exemplo, considerar a opinião dos passageiros –se satisfeitos ou não–, além de um índice fixados pelo contratante, como cumprimento de horários, apresentação e limpeza dos veículos, incidência de acidentes, quebras em serviço, etc.

Além disso, na remuneração dos contratados, considera-se a redução do “custo por passageiro” como ganho de produtividade o que é completamente errado. Ora, visar estimular a redução de custos é bom, mas depende de qual custo está sendo economizado.

Pode-se, por exemplo, estimular o aumento da lotação dos veículos, já que ônibus mais lotados significam menores “custos por passageiros”. Tal “ganho” não faz sentido e não significa redução nenhuma de custo. Ganhar produtividade significa produzir mais com menos recursos e não ônibus mais lotados. Significa gastar menos combustível, pneus e freios por uma melhor qualidade na direção dos veículos e assim por diante.

Por outro lado, quando se trata de qualidade de serviço, o edital apresenta um IQT (Índice de Qualidade do Transporte­) com pesquisa de opinião de usuários etc. Porém, na realidade, isso só interfere no rateio da chamada “produtividade” equivocada, que analisamos acima, entre as empresas do sistema. A melhor em qualidade receberá mais “produtividade”, a segunda melhor, menos, assim por diante.

Nesse sistema, o pior que pode acontecer para as contratadas é nada. Ninguém será prejudicado por prestar péssimo serviço. Ou seja, os indicadores de qualidade medidos serão inócuos para efetivamente provocar melhoria contínua no sistema.

Num momento de discussão e preocupação com o meio ambiente –até o papa se manifestou a respeito–, o edital é omisso quanto à questão do uso de melhores tecnologias, como ônibus híbridos, elétricos de última geração ou mesmo de novas tecnologias em desenvolvimento, como as células de hidrogênio e outras que ainda podem surgir. Afinal, podem ser 40 anos pela frente, teremos esse tempo de garantia de material particulado?

E quanto às condições dos ônibus? Planos e obrigações de eliminação de caminhões encarroçados, de motor dianteiro, que ainda circulam? Poluição sonora imensa, interna e externa aos veículos? Piso baixo? Ar condicionado? Transmissão automática? Baterias recarregáveis para ônibus elétricos? Sinal de internet sem fio gratuito?

Em relação aos absurdos possíveis em 40 anos, cabe uma consideração. O prazo de um contrato por custos deve ser o da amortização de capital do principal item da operação: os ônibus. Dez anos garantem a segurança econômica do investimento. É exatamente o prazo dos contratos que se expiraram em 2013.

 Os 20 anos se explicariam pela inclusão contratual da construção e operação de bens reversíveis como o CCO (Centro de Controle Operacional) ou terminais de transbordo, chamados de bens reversíveis. Ora, no mínimo, o sistema de controle do serviço não deve estar imiscuído com os próprios operadores. Fica parecendo um contrabando.Por que não contratos específicos com especialistas nesses serviços?

O que será da cidade daqui a 20, a 40 anos? Um contrato dessa natureza deve ser consentâneo com a sua dinâmica. A valer os prazos propostos, esse edital estaria renovando contratos realizados em 1975.

Não se usavam biocombustíveis ou etanol, não existiam ônibus elétricos sem alavanca de captação de energia, não existia internet etc. Nem sequer o país era uma democracia.

Há ainda mais coisas a apontar. Várias entidades civis fizeram um rol detalhado de propostas e alterações para o edital encaminhadas à Prefeitura de São Paulo.

No dia 15 de setembro, foi promulgada no Senado a inclusão do transporte como direito social nos termos do artigo sexto da Constituição Federal. Mais uma razão para não se ignorar essa contratação e adaptá-la aos novos tempos.

Está em jogo o que se quer fazer com a mobilidade urbana em São Paulo. Há de haver mais debate sobre o assunto. Para valer!

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