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Sem reforma tributária, Estado e cidadãos apelam para o 'jeitinho'

Especial para o UOL

09/02/2016 06h00

Propiciadas pela evolução tecnológica, três novas formas de se fazer negócios vêm ocupando a imaginação de autoridades fiscais e de contribuintes. Aos poucos, o ramo do entretenimento abandona os suportes tradicionais dos discos ópticos em favor dos arquivos digitais, quer em download ou por streaming; o ramo do desenvolvimento de aplicativos também aproveita-se desses novos canais, simbolicamente deixando para trás os nomes software e logiciário nos dicionários; e, por fim, necessidades que vão dos transportes à entrega de comida passaram a ser atendidas por empresas que não se consideram transportadoras nem restaurantes.

Infelizmente, nosso sistema tributário não foi bem desenhado para lidar com operações simbólicas ou intangíveis. A Constituição de 1988 utiliza o critério material das hipóteses e dos fatos para partilhar a competência tributária entre a União, o Distrito Federal, os Estados e os municípios. Os principais tributos de Estados e de municípios, o ICMS e o ISS, respectivamente, são definidos pela distinção entre mercadorias e serviços.

Essa fascinação pelo palpável envelheceu mal. Já era possível detectar sinais de que algo andava capenga nas discussões que o STF travava sobre o direito ao crédito físico ou ao crédito financeiro, em relação ao ICMS, e à taxatividade da lista de serviços tributáveis contraposta à “essência econômica” da prestação de serviços, quanto ao ISS.

A escalada da gravidade do problema é bem perceptível se nos ativermos às discussões de mesma natureza, mais recentes, sobre a incidência do ISS sobre leasing e sobre a distribuição de lucros devidos por empresas coligadas ou controladas estrangeiras às empresas controladoras ou coligadas brasileiras.

O risco à economia e à segurança jurídica deriva do modo como autoridades fiscais e contribuintes lidam com as dificuldades políticas da reforma global do sistema. Diante da alta improbabilidade de sucesso de qualquer proposta de reforma tributária ampla e equilibrada, todos os atores sentem-se pressionados a alcançarem objetivos de curto prazo com as ferramentas disponíveis. E a pior ferramenta disponível é o “jeitinho”.

Não há espaço para o jeitinho

Vamos começar pelas autoridades fiscais. Por necessidade prática ou por ideologia, o Estado tende a avançar continuamente contra a propriedade privada. Se essa mudança não vem pela alta política cerzida nos salões francos da Federação, os entes tributantes podem se sentir tentados a lançar mão do “jeitinho”. “Jeitinho”, na concepção do Prof. Keith Rosenn, é a prática brasileiríssima de criar atalhos para lidar com normas inexequíveis, injustas ou que simplesmente não interessam a um determinado grupo ou pessoa.

A ampliação da incidência do ICMS para abarcar os programas de computador encaixa-se nessa definição de jeitinho. Dados os inexpugnáveis obstáculos para modificar a competência tributária, uma autoridade sensível à injustiça causada pela falta de tributação de um robusto ramo econômico pode sentir-se tentada a abandonar a “forma” para privilegiar a “substância”, para dizer que algo intangível é, sim, mercadoria.

O desastre é que, ao abandonar “a forma”, a autoridade também descarta a legitimação democrática, decorrente do devido processo legal legislativo. Curiosamente, a mesma autoridade não tende a aplicar idêntico argumento em favor do contribuinte. Defende-se que a incidência seja determinada pelo aspecto econômico (ampla), mas os respectivos créditos, necessários para fazer valer a não-cumulatividade em igual latitude econômica, continuam acorrentados à realidade física.

Vamos ao contribuinte. A motivação para deixar de pagar tributos comporta várias possibilidades: ideologia (vem à mente H.D. Thoreau), dificuldade de interpretação e de aplicação da legislação tributária (ex: o caso do Secretário do IRS que não fazia a própria declaração de ajuste anual por considerar a legislação fiscal muito confusa), falta de dinheiro ou simplesmente a intenção de obter vantagem competitiva ilícita.

Esse último tipo de inadimplente, o sonegador contumaz, com a inequívoca intenção de prejudicar, abusa dos instrumentos administrativos e judiciais para protelar ou para fugir do recolhimento dos tributos devidos. Lança mão de argumentos estapafúrdios, que nos EUA são documentados pelo “Internal Revenue Service” a cada ano na lista suja (dirty ten, dirty dozen, conforme o número de argumentos esdrúxulos utilizados no período). Comete atos criminosos, fomentando a corrupção e a queda das instituições republicanas.

O sonegador contumaz não percebe, ou não dá importância, à circunstância de que somente há propriedade privada se houver Estado.

Tanto o jeitinho do Estado como o jeitinho do contribuinte podem em tese ser corrigidos pelo sistema jurídico, que não é todo ruim. Mas é necessário deixar paixões e vulnerabilidades de lado. Isso pode não ser fácil para as autoridades fiscais, para os legisladores, para os juízes e para os próprios contribuintes, cada qual com suas susceptibilidades de classe e suas idiossincrasias.

Em relação ao Judiciário, a mensagem ao contribuinte e ao Estado deve ser clara: não há espaço para o jeitinho, pois a tolerância do ilícito em nome do “bem maior” ou “da coletividade” invariavelmente deriva benefício aos poucos escolhidos, dificilmente alcançando o cidadão.

Para o Legislativo, cabe a atuação de políticos competentes, sérios, que não dependam do logrolling, o “toma-lá, dá-cá”, para institucionalizar sistema e práticas dignas da República. A boa política nos resgata do conflito contínuo a que estamos propensos por nossas naturezas.

Dois erros não fazem um acerto. Se o Estado responde ao jeitinho do contribuinte com o próprio sabor de jeitinho, e vice-versa, eliminam-se as bases para o desenvolvimento.

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