"Criamos a visita do adeus"

Mesmo em meio à rotina pesada e com medo, profissionais essenciais encontram forças seguir trabalhando

Leonardo Martins, Maria Teresa Cruz (Texto) e Tommaso Protti (Fotos) Do UOL e Colaboração para o UOL, em São Paulo

A enfermeira Renata Maria Cabral, 33, está exausta. Quando começou a trabalhar no Hospital Vila Santa Catarina, na zona sul de São Paulo, no fim de 2019, jamais imaginou que três meses depois estaria na linha de frente do combate à maior crise sanitária do país.

Existe o cansaço físico e o emocional. Nesse um ano e meio, a gente tem horário para entrar, mas não tem para sair. Mas escolhi a área da saúde e fiz um juramento, há mais de dez anos, de cuidar das pessoas. É esse compromisso que assumi dentro de mim que faz com que eu acorde todos os dias."

Hoje, o hospital, que é municipal e administrado pela Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, tem 56 leitos de UTI exclusivos para covid, além das vagas na UPA (Unidade de Pronto Atendimento). Quando o UOL esteve no local, havia 17 leitos ocupados e quatro pacientes intubados. O 18º paciente estava sendo transferido da ala de monitoramento da UPA para a UTI. O perfil dele é o mais comum da segunda onda de contaminações, no hospital: jovem e obeso.

Na contagem do hospital, para a terceira onda, haverá acréscimo de 36 leitos de unidade semi-intensiva e a UPA passará a ter 24 leitos para coronavírus. Além disso, a unidade continua atendendo pacientes não covid, como os de oncologia, maternidade e pediatria de alto risco e transplantes.

Segundo a diretora médica Fabiana Rolla, 46, o quadro de profissionais do hospital aumentou de 1.400 para 2.000 do começo da pandemia para cá. "Um paciente de UTI demanda mais profissionais. No caso da covid, mais ainda."

Para cuidar destes funcionários, o hospital montou salas de descompressão, com massagem, por exemplo, e treinamentos com os gestores, para que casos de depressão e burnout sejam identificados precocemente.

São esses colaboradores também que encontram soluções para manter o elo entre pacientes e familiares.

A gente criou a visita do adeus. A gente consegue, em muitos casos, perceber esse momento da piora e monta uma visita com familiares. Com a ajuda da equipe de psicólogos, também implantamos a videochamada pré-intubação. São momentos que, apesar de tristes, dão esperança porque você possibilita algum conforto. E se a gente perder a esperança, onde a gente vai chegar?"

O Conselho Federal de Enfermagem estima que, desde março de 2020, mais de 8.000 pessoas foram atendidas no projeto "Enfermagem Solidária", em que especialistas em saúde mental ajudam profissionais de forma online.

Há ainda a transmissão da covid, que não poupa os enfermeiros: 790 morreram por causa da doença no país. São Paulo e Bahia são os estados onde a letalidade foi mais alta. O número de mortes pode ser ainda maior já que, segundo o próprio conselho, os registros são subnotificados.

"A gente tem que enfrentar o medo"

Dividindo os corredores dos hospitais, estão funcionários terceirizados que passam pelos mesmos problemas de preocupação e esgotamento. Com um agravante: eles reclamam que nem todas as categorias foram incluídas na prioridade da vacinação contra covid-19.

No ano passado, Rafael de Freitas, 37, trabalhou na limpeza de um hospital particular na capital paulista. Chegou a pegar covid —e teve sintomas leves. "A gente fica muito exposto", diz. "Acho um descaso [não receber os mesmos cuidados que outros profissionais da saúde]."

A gente trabalha diretamente com a desinfecção do ambiente e temos contato com qualquer tipo de vírus. A gente tem que enfrentar o medo e a nossa saúde mental, que vai para o ralo, porque temos que higienizar quartos com paciente com covid."

Há dois meses, Freitas começou a faculdade de veterinária e decidiu parar o trabalho para conseguir se dedicar ao novo projeto de vida.

"Falta um reconhecimento"

A instrumentadora cirúrgica Nathalia Grandizoli, 37, também se preocupa com a demora para a vacinação dos colegas de trabalho. Depois de ouvir as queixas, ela decidiu fazer uma pesquisa.

De 30 de maio a 4 de junho, Grandizoli conversou com 277 pessoas, entre profissionais formados e estagiários: 38% deles não tinham sido imunizados contra a covid-19 e 60% trabalham em regime autônomo, não tendo, portanto, seguridade e benefícios como plano de saúde.

O instrumentador faz parte da equipe médica e temos grande responsabilidade. Contudo, falta um reconhecimento, porque não fomos incluídos na prioridade."

Segundo Grandizoli, em São Paulo, onde atua, falta uma organização que defenda a categoria. Ela trabalha em um hospital particular, não atua na linha de frente no combate ao coronavírus, mas defende que colegas com a mesma formação participam de procedimentos de traqueostomia, por exemplo, em pacientes com covid (cujo objetivo é realizar uma abertura no pescoço do paciente e facilitar a respiração).

"Pô, somos heróis"

Fora dos hospitais, mas também nas ruas desde o começo da pandemia, Christian Ramos da Silva, 23, sai de casa, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, todos os dias às 5h da manhã. Atravessa parte da região sul de transporte público para chegar em Moema, área nobre, onde trabalha há quatro anos como caixa num supermercado.

Trabalhar na pandemia é horrível. Eu tenho minha mãe, que é de idade, minha irmã, em casa. Ficamos ainda mais preocupados porque, no começo, o pessoal não levou muito a sério, então muitas pessoas se contaminaram no meu setor, até que todo mundo começou a usar máscara.

Mas o que mais incomodou Christian foi o "olhar torto" de clientes que, segundo ele, veem os funcionários como "vírus ambulante". "Querendo ou não, a gente que é de baixa renda não trouxe esse negócio para cá."

Para ele, os trabalhadores de serviços essenciais são heróis.

Uma hora, com a correria, você se acostuma com a pandemia. Passou um ano e a gente pensou: pô, somos heróis, vai fazer quase dois anos e estamos aqui lutando, se expondo. Igual o pessoal de farmácia, os frentistas que trabalham em postos."

"Mesmo vacinado, fico com medo"

O motorista de ônibus Renato Pereira Galdino, 40, que também manteve a rotina no trabalho, ficou três dias em um hospital, em maio do ano passado, com covid-19. Ele acredita que foi contaminado no trabalho. "Graças a Deus me recuperei, mas muitos não se recuperaram."

Motoristas e cobradores são linha de frente. Levamos policiais, pessoas que trabalham em loja. Eu me sinto diferente. Mas o medo foi constante, até hoje, mesmo vacinado, fico com medo. Ninguém está livre desse vírus terrível."

Agora, Galdino espera que os mecânicos, os profissionais de RH e de outros departamentos da empresa também sejam imunizados.

Levantamento do Sindicato de Motoristas e Cobradores de Ônibus aponta que, até semana passada, foram 2.084 casos confirmados de motoristas com covid-19 na capital, e 167 vidas perdidas.

O que dizem os governos

O governo de São Paulo, responsável por organizar a vacinação contra covid-19 no estado, diz que seguiu as prioridades estabelecidas pelo PNI (Plano Nacional de Imunização), do Ministério da Saúde, mas com adaptações.

"Devido à morosidade e desorganização na aquisição de imunizantes contra covid-19 por parte do governo federal, (...) o Estado de SP tem segmentado a vacinação dos grupos prioritários considerando as remessas recebidas, de forma a atender integralmente os públicos-alvo", diz a nota enviada ao UOL.

O estado cita que os profissionais de saúde estão sendo vacinados desde 17 de janeiro —quando teve início a vacinação no país —"inclusive de setores administrativos ou de apoio, conforme do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação (PNO) contra covid-19". Também destaca que começou a imunizar trabalhadores do transporte urbano em 18 de maio.

O Ministério da Saúde informou que "instrumentadores, funcionários da limpeza e terceirizados que atuam nos estabelecimentos de saúde estão contemplados no PNO" e os motoristas de transporte coletivo também.

Muito além de 500 mil mortes

Imagine se toda a população de uma cidade como Florianópolis desaparecesse em pouco mais de um ano. Segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a capital de Santa Catarina tem 508 mil habitantes —pouco mais do que os 500 mil mortos por causa da covid-19 em todo o país em 15 meses.

Em meio ao luto —hoje, são cerca de 2 mil mortes por dia, em média—, nosso país também enfrenta os efeitos colaterais da pandemia do coronavírus, como o aprofundamento da desigualdade social. A quantidade de famílias em extrema pobreza e o desemprego bateram recorde.

No pior ponto da crise social, o UOL conversou com quem está se virando para sobreviver na pandemia —seja com doações, trabalhando incansavelmente ou atravessando a cidade em uma moto para entregar comida, enquanto não tem certeza de que ele mesmo irá almoçar.

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