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Cientistas fazem acordo com família para uso ético de dados genéticos

Mariette Le Roux

Em Paris

07/08/2013 16h32

Sessenta e dois anos atrás, cientistas coletaram células cancerígenas de uma fazendeira afro-americana que cultivava tabaco, as quais foram usadas em alguns dos maiores avanços feitos na ciência médica, sem seu conhecimento ou consentimento.

As células incomumente resilientes foram retiradas de Henrietta Lacks logo após a sua morte e usadas por décadas sem o conhecimento de sua família, embora tenham servido de base para descobertas premiadas com o Nobel e por render milhões a uma indústria multimilionária que desenvolveu a vacina contra a pólio, a clonagem, a fertilização in-vitro e muitos remédios.

Elas se tornaram a linhagem celular humana mais amplamente usada pelos cientistas e fizeram de Lacks uma grande contribuinte da ciência médica, mesmo que involuntariamente.

Agora, sessenta anos após a sua morte, os descendentes de Lacks estão seguindo os passos desta heroína da ciência, desta vez contribuindo para estabelecer as bases para o uso ético de dados genéticos obtidos em nome da ciência.

Nesta quarta-feira (7), autoridades anunciaram que finalmente chegaram a um acordo com a família de Lacks para o uso continuado, embora controlado, de dados genéticos das células.

"É realmente adequado, em vista das contribuições inestimáveis que Henrietta Lacks deu para a ciência e a medicina, que sua história agora esteja catalisando mudanças políticas", declarou a jornalistas Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH).

"Todos nós devemos colocar Henrietta Lacks e sua família entre os grandes filantropos do nosso tempo se considerarmos como eles contribuíram para o avanço da ciência e da saúde humana", acrescentou.

Mãe de cinco filhos, Lacks tinha 31 anos em 1951 quando morreu, vítima de um câncer de útero agressivo, no Hospital Johns Hopkins em Baltimore, Maryland.

Naquela época, as leis americanas não exigiam aos médicos que obtivessem o consentimento dos familiares para coletar amostras celulares.

As células extraídas de Lacks, denominadas HeLa em alusão às primeiras sílabas de seu nome e sobrenome, causaram grande excitação nos círculos científicos: elas foram as primeiras células humanas a crescer incessantemente em laboratório, enquanto todas as outras coletadas até então acabavam morrendo.

"As células HeLa são consideradas um dos maiores milagres médicos do século passado", explicou em um comunicado a Universidade de Washington em Seattle, que publicou nesta quarta-feira (7) uma sequência genética das células na revista científica Nature, sob os termos do novo acordo.

"As células permitiram aos cientistas realizar experimentos sem precisar de um ser humano vivo e levaram a importantes avanços médicos", incluindo a criação da vacina para certos tipos de câncer de útero e medicamentos para tratar herpes, leucemia, gripe e mal de Parkinson.

A identidade de Lacks foi revelada em um periódico científico em 1971, o que se seguiu a um documentário televisivo em 1997 e à publicação, em 2010, de um livro intitulado "The Immortal Life of Henrietta Lacks" (A Vida Imortal de Henrietta Lacks, em tradução livre), que agora está sendo adaptado para o cinema.

Em março deste ano, cientistas do Laboratório de Biologia Molecular Europeu, na Alemanha, publicaram o genoma completo da linhagem celular, incluindo dados que poderiam revelar alguns traços hereditários dos descendentes de Lacks.

Esta informação, que pode apontar a propensão a doenças como alcoolismo, mal de Alzheimer ou distúrbio bipolar, pode ser usado para negar às pessoas um seguro de vida ou cobertura para incapacidades e os dados foram removidos de fóruns públicos em questão de dias após protestos da família.

O incidente resultou em conversas entre a família Lacks e os NIH, que por sua vez anunciou o acordo, que determina os termos que os cientistas precisam aplicar para o uso dos dados genéticos das células HeLa ao estudá-las, de acordo com os termos definidos por um painel que incluirá familiares de Lacks e contribuir com suas descobertas para criar um banco de dados.

"Hoje, a divulgação do sequenciamento do genoma humano é um evento histórico e transformador", afirmou a neta e porta-voz da família de Henrietta, Jeri Lacks Whye, por teleconferência.

Whye explicou que a decisão foi complicada e tentou equilibrar as necessidades da ciência e a proteção à privacidade da família.

O acordo abrange pesquisadores financiados pelos NIH e não impedirá que outros juntem as peças de grandes partes do genoma a partir de dados que já estão em domínio público, ou sequenciá-lo a partir do zero.