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A batalha de bebês com microcefalia para chegar ao primeiro ano de vida

Carla chegou a fazer massagem cardíaca na própria filha, que aspirou o leite materno para o pulmão  - Paulo Paiva/ BBC
Carla chegou a fazer massagem cardíaca na própria filha, que aspirou o leite materno para o pulmão Imagem: Paulo Paiva/ BBC

Camilla Costa - @_camillacosta

da BBC Brasil em São Paulo

15/06/2016 15h00

"Eu vi minha filha praticamente morta", é como a pernambucana Severina Carla da Silva, de 32 anos, descreve o momento em que sua bebê Nívea Heloísa, de 6 meses, desmaiou após a amamentação.

"Ela ficou toda roxinha, ficou sem respirar e desmaiou. Aí eu me lembrei da massagem cardíaca e fiz. Foi quando ela voltou", disse à BBC Brasil.

Nívea tem microcefalia causada pelo vírus zika e, como muitos dos bebês afetados, tem apresentado problemas respiratórios relacionados com as lesões cerebrais - que, em alguns casos, levaram à morte.

Sem números oficiais de bebês microcéfalos que foram internados em estado grave ou faleceram nas últimas semanas, o registro informal fica por conta dos grupos de apoio que reúnem mães de todo o Brasil.

Em um deles, formado no WhatsApp, foram noticiadas três mortes em duas semanas e pelo menos cinco internamentos. Todos com quadros semelhantes. Outro, criado em Recife, relata que pelo menos dez bebês teriam sido internados desde maio.

Para Carla, a explicação sobre o que acometeu sua filha, que ficou uma semana internada, deixou de ser um mistério. "Eles (os bebês com microcefalia) têm problema de deglutição e Nívea estava muito gripadinha, com muito catarro. Quando estava mamando, ela broncoaspirou, e o leite entrou no pulmão", explica.

Os especialistas que acompanham os bebês desde o fim do ano passado já sabiam que isso aconteceria.

Problemas como a broncoaspiração - quando líquidos, alimentos ou até a saliva são aspirados para o pulmão ao invés de irem para o esôfago - são comuns em pacientes com microcefalia grave, que são cerca de 70% dos casos causados pelo vírus da zika.

"Quando você nasce, sucção e deglutição são reflexos. Nosso cérebro consegue fazer com que, na hora de comer, a gente pare de respirar, engula e volte a respirar. Se comemos e respiramos ao mesmo tempo, respiraremos o alimento. É o que acontece com essas crianças", explica a neurologista Vanessa van der Linden.

"À medida que o bebê vai ficando mais velho, ele começa a perder o reflexo e a ter que organizar isso usando o cérebro. Mas, quando ele tem um comprometimento neurológico, pode nascer mamando bem, mas a partir dos três ou quatro meses, deixa de coordenar essas funções."

O primeiro ano de vida é o mais difícil na vida dessas crianças, segundo Vanessa van der Linden, porque é o período em que pais e médicos descobrem a extensão dos danos causados pelo vírus em seus cérebros.

"O aparecimento dos sintomas da criança ocorre na medida em que o cérebro amadurece. Nesse início, ainda não se sabe exatamente tudo o que ela tem e fica difícil prevenir as crises", diz.

"Depois do primeiro ano as complicações continuam, mas pelo menos já sabemos se a criança conseguirá comer pela boca, se precisa de sonda, etc. Sabemos o que se pode fazer para deixar a vida dela um pouco melhor."

'O que está acontecendo com nossos bebês?'

As dificuldades com a respiração, a sucção e a deglutição também podem causar sufocamento e facilitar a ocorrência de pneumonias nas crianças, especialmente com a circulação de vírus da gripe no inverno - razões pelas quais a maior parte dos bebês têm sido internados.

"Essa é a maior ameaça à vida deles. Há outros problemas como as convulsões, porque muitos têm epilepsia. Mas essas têm sido administradas", diz a infectologista Maria Ângela Rocha, do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Recife.

Há uma semana, a pernambucana Solange Ferreira, cuja história ficou conhecida internacionalmente após as fotos que a mostravam dando banho de balde em seu bebê, também viveu o pesadelo de Carla.

José Wesley, de 8 meses, foi internado na UTI com bronquite e pneumonia. Os engasgos com alimentos e até com água são frequentes desde os quatro meses, segundo ela.

"A médica falou que a comida dele tem que ser grossa pra ele não engasgar, porque ele não sabe comer", disse à BBC Brasil, por telefone, do hospital em Caruaru. "A sensação foi ruim, achei que eu ia perder meu filho. Passei um sufoco triste."

O medo das que acompanham seus filhos aos hospitais é compartilhado nos grupos de apoio, e contamina outras mães.

"O que está acontecendo com nossos bebês?", pergunta uma delas, reagindo à notícia de mais uma morte no grupo "Mães de Anjos Unidas", que reúne mulheres de norte a sul do país.

"Quando morre um bebê e elas ficam sabendo pelo grupo, recebo mensagens de várias mães, querendo saber se era meu paciente. Elas entram em pânico, choram muito", disse à BBC Brasil Daniele Cruz, pediatra no IMIP, em Recife.

Assustadas e sem saber o que fazer diante da situação dos bebês, as mulheres trocam dicas e macetes entre si - o que nem sempre é recomendável, segundo os médicos.

"É preciso ter cuidado com as orientações generalizadas. O que serve para uma criança não necessariamente serve para outra. As mães querem se ajudar, mas não têm muita noção do risco que isso pode causar", diz a fonoaudióloga Luciana Calabria, da AACD em Pernambuco.

Sessões de fonoaudiologia e fisioterapia são as mais indicadas para ajudar crianças que têm estas dificuldades. De acordo com Calabria, os pais devem estar atentos às seguintes situações, que podem sinalizar que há algo errado:

- Se a criança tem dificuldades de respiração, fica "cansada" (ofegante) com frequência;

- Se costuma engasgar com alimentos e líquidos;

- Se tem dificuldades de pegar o peito da mãe ou de sugar a mamadeira;

- Se fica roxa durante a amamentação ou acumula saliva na boca;

- Se a criança fica gripada com muita frequência.

Ela afirma ainda que é importante alimentar a criança sentada ou o mais elevada possível, com a cabeça alinhada ao tronco. "Se ela está inclinada, deitada, com a cabeça jogada para trás, isso aumenta o risco de engasgo", diz.

Apelo na televisão

A paraibana Claudilene Pereira, de 31 anos, também teve que levar seu filho Matheus ao hospital, por dificuldades respiratórias, no início de maio. O bebê, no entanto, não resistiu e morreu três dias antes de completar um ano, vítima de uma parada cardíaca convulsiva.

Matheus nasceu meses antes que os casos de microcefalia começassem a chamar a atenção dos médicos na Paraíba e em Pernambuco.

Exames chegaram a descartar outras infecções, mas Claudilene nunca recebeu os resultados que poderiam confirmar a relação de seu caso com o vírus da zika.

"Não senti nada, não sei se tive zika. Quando se começou a falar de zika e microcefalia, ele tinha 4 meses. Vieram fazer reportagem com ele. Aí eu me assustei muito, fiquei desesperada. Mas nunca desisti", disse à BBC Brasil.

Além da microcefalia, o garoto nasceu com paralisia cerebral e pé torto congênito, quadro semelhante a alguns dos casos mais severos que apareceram depois.

"Nos primeiros meses, Matheus chorava 24 horas, a gente não entendia. Ele ficava vermelho e com a cabeça muito quente. Como tudo era novidade para mim, eu gravava vídeos no celular. Mostrei para a neurologista e ela me disse que eram crises de convulsões."

Mas a dificuldade para conseguir os remédios anticonvulsivos para o bebê de Claudilene ilustra outra faceta da batalha enfrentada pelas famílias no primeiro ano de vida das crianças.

"O remédio que funcionou para ele custava quase R$ 400. Eu recebia pelo governo, mas em alguns meses não tinha, e não havia em farmácias. Matheus não conseguia tomar, e as crises aumentavam muito. Eu precisava de 75 comprimidos para um mês, mas nunca cheguei a ter essa quantidade", diz.

Ofegante, Matheus foi levado pela mãe a um hospital em Cabedelo, região metropolitana de João Pessoa, no dia 16 de maio.

"Fizeram raios-X achando que era pneumonia, mas não era. Fiquei esperando uma vaga na UTI, e eles não me informavam a gravidade do problema. Quarta à noite outra médica disse para mim: 'Mãe, seu filho está muito muito grave. Faça alguma coisa, ele não pode ficar aqui'", relembra.

"Eram 2 da manhã e liguei para um jornalista da TV com quem tinha contato. Pedi para fazer um apelo na televisão, porque tudo na televisão ficava mais fácil. Sete horas da manhã entramos ao vivo na TV, 08h30 consegui uma vaga na UTI em outro hospital."

Em sua primeira noite na UTI, Matheus faleceu. "Minha ficha caiu quando vim para casa, já com o laudo na mão, e deixei ele lá."

Família estendida

Na batalha do primeiro ano, em que as mães enfrentam a falta de informações, os graves desdobramentos da Síndrome Congênita da Zika e as deficiências do sistema de saúde, a ajuda dos familiares é seu principal trunfo.

Nos casos como o de Carla, cujo marido a abandonou dias após o nascimento da filha - a terceira do casal -, vizinhas e até parentes distantes tomaram seu lugar.

"Tenho uma vizinha que me ajuda muito à noite. A gente chega quase no mesmo horário do trabalho. Enquanto eu faço o jantar e fico com os meninos, ela fica com a menina. Depois nos revezamos e jantamos, todos juntos, lá em casa. Tem que ser assim para dar conta", diz.

Após a licença maternidade, ela teve que voltar ao trabalho como promotora de vendas para pagar as contas. Agora, paga também a esposa de um primo, que vem de uma cidade do interior para cuidar das crianças.

"É muito difícil porque eles me pedem para ficar em casa. Chego mais tarde na empresa por causa deles, mas trabalho durante o almoço, não paro para comer."

Para Claudilene, as dificuldades continuam mesmo após a partida de Matheus.

"Eu era faxineira e parei, minha vida parou. Meu marido estava desempregado e passamos por uma crise, a família ajudava. Só me estabeleci depois que comecei a receber o benefício do INSS de um salário mínimo. Matheus já tinha 6 meses", conta.

"Quando ele morreu, o benefício foi cortado na hora. Eu nem recebi pelos 19 dias do mês que ele esteve vivo. Tive despesas com medicação, com o funeral. Me disseram que eu teria que entrar na Justiça, mas resolvi não fazer porque me machuca muito e não resolve o meu problema."

Além do trabalho para pagar as dívidas, ela continua a orientar outras mães sobre a importância do acompanhamento médico e o percurso para conseguir o auxílio-doença, no papel de "veterana da microcefalia".

"Não é por que perdi Matheus que esse problema não é mais meu. Os filhos delas são meus filhos também. Tem muitas mães que não têm apoio. Eu tive sorte, mas nem todas são assim", diz.

"Eu sofro, mas minha história é a realidade do mundo como está hoje. E pode ajudar outras mães. É isso o que me fortalece."