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Transmissão da zika por pernilongo comum requer mudança 'radical' em medidas de controle

Cientista da Fiocruz Pernambuco encontrou pela primeira vez esse tipo de mosquito carregando zika na natureza - Gabriela Belém/BBC Brasil
Cientista da Fiocruz Pernambuco encontrou pela primeira vez esse tipo de mosquito carregando zika na natureza Imagem: Gabriela Belém/BBC Brasil

Camilla Costa*

Em São Paulo

24/07/2016 08h06Atualizada em 24/07/2016 08h06

A bióloga Constância Ayres, da Fiocruz Pernambuco, fez uma descoberta inédita que tem o potencial de proporcionar um salto no conhecimento dos cientistas sobre o vírus Zika, e mudar radicalmente a estratégia brasileira de prevenção dele.

Ayres conseguiu encontrar, pela primeira vez, pernilongos carregando o vírus na natureza.

Na quinta-feira, a Fiocruz anunciou oficialmente que o mosquito Culex quinquefasciatus, conhecido como muriçoca ou pernilongo doméstico, também pode transmitir o vírus que causa microcefalia e malformações em bebês.

Até então, cientistas acreditavam que o mosquito Aedes aegypti era o principal vetor do vírus no Brasil. Agora, de acordo com Ayres, os cientistas precisam determinar qual das duas espécies é a mais importante na epidemia de Zika no Brasil.

Durante o anúncio, a Fiocruz afirmou que, até que se compreenda a importância do pernilongo na epidemia, a política de controle da Zika continuará focada no Aedes aegypti.

Mas dependendo dos resultados, seria necessária uma "mudança radical" na atual estratégia atual de controle da epidemia, afirma a pesquisadora.

"Não existem estratégias de controle do Culex no Brasil. Isso vai ter de mudar radicalmente", diz.

Em entrevista à BBC Brasil, Ayres esclareceu a dúvidas sobre o andamento da pesquisa e as implicações de sua descoberta.

1. Como determinou-se que o pernilongo pode transmitir o vírus Zika?

A pesquisa analisou 500 pernilongos capturados na Região Metropolitana do Recife. Eles foram obtidos em locais onde havia casos notificados de Zika, segundo Ayres, para aumentar a possibilidade de se encontrar o vírus no ambiente.

Os pernilongos foram divididos em 80 grupos, e o vírus foi encontrado em três deles. Em dois destes grupos, de acordo com a Fiocruz, os mosquitos não estavam alimentados. Isso demonstra "que o vírus estava disseminado no organismo do inseto e não (foi contraído) em uma alimentação recente num hospedeiro infectado".

No laboratório, a equipe de Ayres alimentou os mosquitos com uma mistura de sangue e vírus, para entender como o Zika se replica dentro dos insetos.

Em seguida, os pesquisadores investigaram o intestino e a glândula salivar dos mosquitos. Se o pernilongo não fosse vetor, seu intestino bloquearia o desenvolvimento do vírus dentro do organismo.

Mas, se o vírus conseguisse se replicar, ele chegaria até a glândula salivar do Culexe poderia ser transmitido para humanos durante a picada.

Dessa forma, a equipe de Ayres confirmou que o Culex pode carregar o vírus em seu organismo. Amostras da saliva dos pernilongos infectados foram analisadas, e continham quantidades de vírus semelhantes às encontradas na saliva do Aedes aegypti.

Segundo Ayres, outra descoberta da Fiocruz Pernambuco dá força à hipótese: um grupo de pesquisa percebeu que a distribuição geográfica da filariose (elefantíase) e do Zika vírus em Recife é muito semelhante.

Em Recife, o Culex quinquefasciatus é o único mosquito que transmite o parasita que causa a elefantíase. "Somos a única área do Brasil endêmica para essa doença", explica a bióloga.

"Cerca de 85% das mães que tiveram bebês com microcefalia por causa do Zika estão em áreas muito precárias, sem saneamento básico, onde ocorre mais a filariose. Isso pode explicar a participação do Culex na transmissão da Zika e dar suporte à nossa hipótese."

"O Aedes aegypti, por outro lado, está mais distribuído na cidade. Vemos que a dengue é uma doença bem democrática, não está só em áreas precárias", afirma.

2. O pernilongo também pode ser vetor de tranmissão de dengue e chikungunya?

De acordo com a Fiocruz, a pesquisa deu prioridade ao vírus Zika por causa da epidemia da doença no Brasil e sua ligação com a microcefalia.

Apesar da epidemia de chikungunya, que também atinge principalmente Estados do Nordeste, ainda não se sabe se esta doença também pode ser transmitida pelo Culex.

Ayres afirma que o vírus da dengue já foi encontrado em pernilongos coletados em campo, mas ainda não se confirmou se ele pode ser seu vetor.

3. Quais são os próximos passos da pesquisa?

Segundo Ayres, sua equipe agora investigará qual é exatamente a capacidade vetorial do Culex, ou seja, quão eficiente ele é para carregar e transmitir o vírus.

"Já sabemos que a taxa de infecção natural do Culex é semelhante à do Aedes aegypti, mas isso envolve outros aspectos biológicos do mosquito na natureza: o tamanho da sua população, a longevidade dessas espécies, o número de picadas que dão no homem, se preferem se alimentar do sangue humano ou não", afirma.

"Quando tivermos essas informações, poderemos saber qual das duas espécies tem maior importância na transmissão do Zika."

De acordo com a bióloga, a população de pernilongo em Recife é 20 vezes maior que a do Aedes aegypti. Mas, apesar desta vantagem populacional do Culex, oAedes pica mais vezes uma pessoa para se alimentar.

É necessário entender, por exemplo, se picar várias vezes faz do Aedes vetor mais competente de transmissão do vírus.

A equipe pernambucana também investiga a possibilidade de a fêmea do pernilongo transmitir o vírus para sua prole ainda nos ovos.

"Coletamos os ovos dos mosquitos infectados, as larvas eclodiram, deixamos crescer até virarem adultos e congelamos o material. Vamos analisá-lo", explica Ayres.

"Se conseguirmos detectar o Zika, significa que eles contraíram o vírus da mãe. Isso tem importância epidemiológica, porque é mais uma forma de o vírus se manter presente na natureza.

Ele poderia permanecer no ambiente sem necessariamente ter de passar por humanos."

No ciclo de transmissão de doenças como o Zika, o Aedes aegypti pica uma pessoa doente, se infecta e leva o vírus para outras pessoas. Ele não transmite o Zika, até onde se sabe, a seus ovos.

4. Se o pernilongo for o principal transmissor, qual seria o impacto desta descoberta?

Para Ayres, isso significaria a necessidade de alterar a estratégia atual de controle da epidemia de Zika, completamente focada no controle da população do Aedes aegypti.

"Não existem estratégias de controle do Culex no Brasil. Isso vai ter de mudar radicalmente, e é por isso que as autoridades exigem muita cautela e mais comprovação. É natural que seja assim", diz.

O pernilongo tem hábitos diferentes do Aedes aegypti. É mais ativo à noite, por exemplo, o que tornaria importante a proteção com repelentes e roupas compridas também neste horário, especialmente para gestantes.

Ele também prefere colocar seus ovos em locais extremamente poluídos como esgotos, fossas e canaletas, o que, segundo a pesquisadora, tornaria as medidas de saneamento básico ainda mais "urgentes" para evitar novos casos de Zika e microcefalia em bairros mais precários.

"O saneamento básico não erradicará o mosquito, mas vai ajudar no seu controle populacional. As medidas de saneamento ajudam a manter o mosquito em um nível no qual não teremos grande epidemia, apenas casos esporádicos da doença."

5. A descoberta do Culex como vetor do Zika é preocupante para outros países do mundo?

De acordo com a bióloga, o Culex quinquefasciatus está presente em todas as áreas urbanas de regiões tropicais, subtropicais e temperadas - de clima mais frio, como países do Norte da Europa, Canadá e Austrália. Já o Aedes aegypti fica restrito às regiões tropicais e subtropicais.

Ela esclarece, no entanto, que mostrar a capacidade do Culex de transmitir Zika no Brasil não significa que o mesmo ocorreria, por exemplo, nos Estados Unidos.

"Existe a possibilidade, mas cada população deve ser investigada, principalmente porque o Culex quinquefasciatus, que é o que temos no Brasil, é parte de um complexo de espécies", diz.

"Nos Estados Unidos existem outras subformas dessa espécie de mosquito. E não sabemos ainda se a competência vetorial de todas as espécies é a mesma."

(*) Colaborou Gabriela Belém, do Recife para a BBC Brasil