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Depoimento: Minha mãe morreu em colônia para tratar hanseníase

Helena Bueno/Arquivo Pessoal
Imagem: Helena Bueno/Arquivo Pessoal

Juliana Passos

Do UOL, em São Paulo

31/01/2016 06h00Atualizada em 10/02/2016 22h08

 As primeiras memórias de infância de Helena Bueno são de quando tinha apenas seis anos. Nessa idade, ela era levada de casa em casa, não para ser parte da família, mas para trabalhar com serviços domésticos. Seus pais tinham hanseníase e estavam internados no hospital Pirapitingui, em Itu (SP). Ela foi descobrir o paradeiro deles aos 18 anos. E, somente aos 50, entendeu o que realmente havia acontecido.

A hanseníase, antigamente chamada de lepra, afeta principalmente a sensibilidade da pele e dos nervos das extremidades do corpo. A doença é contagiosa e, por isso, é associada às condições de pobreza e higiene precárias. Mas ela é facilmente tratada e não há período de contágio se o paciente estiver em tratamento. Apesar disso, decretos do governo tornaram obrigatório o isolamento de pacientes de hanseníase de 1923 a 1962, quatro anos após um congresso internacional sobre a doença não achar mais a medida necessária. A lei que pôs o fim da prática no Brasil é só de 1986.

Assim, foram criadas colônias de internação, cerca de 40, em áreas rurais, com estrutura de vilas, onde se produziam alimentos, havia comércio, fábrica e oficinas para torná-las autossuficientes. Milhares de pessoas foram internadas compulsoriamente, sem que haja uma estimativa mais precisa do Ministério da Saúde. Relatórios de atividades do Departamento Nacional de Saúde do período do governo de Getúlio Vargas, apontam que em 1947 havia 47.622 pacientes de hanseníase e 21.650 pessoas internadas obrigatoriamente.

Os filhos eram separados dos pais e enviados para educandários. As crianças ficavam lá até os 18 anos. E foi ao deixar o Educandário Santa Terezinha, em Carapicuíba (SP), que Helena e sua irmã receberam os documentos pessoais e dos pais, incluindo a posse de um terreno em Sorocaba. A partir daí Helena foi atrás da história de sua família.

Em Guarulhos, ela recebeu de Dona Ermelinda, vizinha de seus pais, uma bíblia com uma foto deixada por sua mãe, Maria Alves de Oliveira Bueno. Na dedicatória, conseguiu entender o motivo de não ter notícias de sua mãe: Maria Bueno não sabia para onde as filhas tinham sido levadas: “Para minhas filhas, a quem puder encontrá-las”.

A mãe de Helena morreu praticamente nos braços de Ermelinda, no Hospital Padre Bento em Guarulhos. Ermelinda contou para Helena que ela nasceu enquanto sua mãe estava na prisão da Colônia de Pirapitinguí em Itú. Era para lá que doentes com “mau” comportamento eram levados. "Por tudo que passei desde pequena, pensei que era só comigo. Mas eu não sabia o que meus pais tinham sofrido”, diz tentando conter o choro. “Nunca imaginei que teria uma cadeia dentro de um hospital. Saber disso foi o que mais me deixou doente”.

Ao comentar a política de isolamento da época, a coordenadora do Programa de Controle da Hanseníase do Estado de São Paulo e diretora da divisão de hanseníase do Centro de Vigilância Epidemiológica, Mary Lise Carvalho Marzliak, diz que, com o conhecimento que se tinha na época, essa foi a maneira de se evitar a contaminação. O modelo, que previa a existência de prisões, foi inspirado nos modelos construídos na Europa.

Marzliak cita o filme “Os melhores anos de nossas vidas”, da diretora Andrea Pasquini, como forma de compreender o que se passou nas colônias. O documentário, lançado em 2003, foi gravado na vila Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes (SP).

Nas entrevistas exibidas no filme, diversos relatos mostram como os pacientes eram tratados como “caso de polícia”, a começar com a forma que chegavam à colônia: em camburões. Uma vez lá dentro, a ausência de perspectiva de deixar do local fez com que muitos adoecessem; seja pela depressão, ou pelo agravamento dos sintomas da hanseníase. Diante de maus tratos, os pacientes realizaram protestos e conquistaram melhorias para o local onde ainda vivem, não mais compulsoriamente.

Empregada em vez de filha

Helena soube que seu avô materno tinha hanseníase, e, com cinco anos, sua mãe passou a conviver com a doença. Ela foi abandonada no Sanatório Padre Bento, em Guarulhos. Mais tarde, Maria Bueno foi para a colônia em Itu. E Helena descobriu que foi transferida para o educandário Santa Terezinha no dia em que nasceu.

“O fato de você ter os pais internados por conta da hanseníase, faz você imaginar que deveriam cuidar de você, dar carinho. E isso não aconteceu. Eu sofri muito com castigos. E nas casas de família foi muito pior”, conta.

Helena diz que teve sorte em conseguir se reerguer e construir uma família. Muitos daqueles que enfrentaram a mesma situação desenvolveram problemas de memória e não encontraram suas famílias. Helena está casada há 25 anos e tem um filho de 22 anos.

Para a coordenadora do programa de coordenadora geral de Hanseníase e Doenças em Eliminação do Ministério da Saúde, Rosa Castália, a história do isolamento compulsório precisa ser preservada. “Por qualquer perspectiva que você olhe, o isolamento foi um erro, mas na época era a política sanitária vigente. Temos que manter esses fatos na memória para que esses fatos não sejam repetidos. Nada justifica a desumanidade com que as pessoas foram tratadas”, diz a coordenadora.

Combatida há mais de 80 anos, a hanseníase ainda apresenta altos índices no Brasil, que tem como meta eliminar a doença no país, que em 2014 tinha 1,51 infectado a cada dez mil habitantes, uma das mais altas taxas do mundo -- para a OMS (Organização Mundial de Saúde), a doença é um problema de saúde pública.

Reparações

Em 2007, o governo federal concedeu pensão de um salário mínimo e meio para aqueles que foram internados compulsoriamente. Foram indenizadas cerca de 9.000 pessoas, e mil aguardam a liberação do dinheiro por falta de documentação. Há dois projetos que preveem a indenização também aos filhos de quem foi internado compulsoriamente.