Ligar doente mental a violência pode agravar preconceito, dizem psiquiatras
Uma declaração do candidato à Prefeitura de São Paulo Celso Russomanno (PRB) tem gerado polêmica. Em entrevista à rádio CBN, o atual líder das pesquisas de intenções de voto na capital paulista disse que "os moradores de rua que têm problemas de deficiência mental são na maioria das vezes violentos dentro de casa" e que o "doente mental tem violência, em determinados momentos agride e quebra as coisas". A fala foi rebatida por psiquiatras, que temem até o aumento do preconceito.
Russomanno baseou sua fala em uma comissão feita pelo Congresso para avaliar a situação dos moradores de rua. Tal comissão, contudo, foi realizada há 13 anos. A pedido da reportagem, o candidato encaminhou a taquigrafia de uma audiência pública de 2003 na qual suas declarações de basearam.
Sarah Escorel, então pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, relatou em 2003 que pesquisas apontam que a maioria das pessoas está na rua por conflitos familiares e cita pesquisa feita pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) em 1999, que apontou que 37% dos moradores de rua tinham problemas psicológicos e 20% uma deficiência física ou mental, mas pede "cuidado" com este diagnóstico.
Além de Escorel, uma representante da Prefeitura de Porto Alegre citou um número "crescente" de moradores de rua com transtornos mentais. Não há no documento relação entre os conflitos familiares, a violência e os transtornos mentais. O deputado afirma que não errou em sua fala, mas que pode ter sido mal-interpretado.
"Se eu fui mal-interpretado, me desculpe. Eu não estou atribuindo nada. Não se pode dizer isso. Foi uma constatação feita em audiência pública. Não fui eu que atribuí" Celso Russomanno ao UOL
Psiquiatras contestam a declaração do candidato. "Eu acho uma fala equivocada e perigosa. Ele considera que qualquer transtorno mental seja passível de violência, o que não é fato. Não pode generalizar. É um preconceito grande aos portadores de doença mental que já sofrem muito preconceito", opina Cristine Lacet, psicanalista e doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, com 15 anos de experiência em Hospital Dia na rede pública do Estado de São Paulo.
Doença mental é responsável pela violência do indivíduo?
Presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), Antônio Geraldo da Silva contemporiza a declaração de Russomanno e foca na falta de tratamento como problema a ser resolvido: "doente mental é perigoso? Se não estiver em tratamento, sim. Sob tratamento não é perigoso. O que ele (Russomanno) quer dizer são os fatos de doentes mentais terem sido jogados nas ruas, tirados dos hospitais e não terem tratamento", diz.
Uma pesquisa internacional feita em 2010 aponta que doenças mentais, isoladamente, não tornam as pessoas mais violentas. Uma tese de doutorado da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Osvaldo Cruz) publicada em 2000 aponta que, entre moradores de rua com distúrbios mentais no Rio de Janeiro, só 12,5% apresentavam hostilidade.
Lacet lembra que há diferentes tipos de doença mental e que é preciso deixar claro o que é "perigoso". Já Tânia Aiello, professora da PUC-Campinas e autora do livro "A internação psiquiátrica e o drama das famílias", entende que o perigo é oferecido pela sociedade.
"Doentes mentais não são mais violentos do que as pessoas normais. Em uma sociedade violenta que vivemos, você colocar o doente mental como violento é uma distorção. Na verdade, estas pessoas são vítimas de violência sociais que existem no mundo. A sociedade é violenta, o Estado é violento. O doente mental é violentado." Tânia Aiello
Papel da família
Na mesma entrevista à CBN, Russomanno ainda tocou em outra questão: que os moradores de rua com doenças mentais são abandonados pelas famílias após casos de violência. A relação entre quem apresenta transtorno mental e a família é tênue e também provoca discussões. Russomanno diz que sua declaração foi feita também após observações.
"O que nós vemos é que não é violento, é que tem crises. Pelo menos [é] o que os familiares relatam. O que a gente pode ver é que em determinados momentos em que estão em crise, essa violência acaba tirando eles de casa, pela quebradeira, destruição que fazem, a família não os quer mais", aponta ao UOL o candidato.
A declaração, contudo, também causa contestações.
"Está generalizando novamente. Em algumas situações de crise e em alguns casos isso pode acontecer. Alguns também desenvolvem a doença na rua, outros saem psicóticos errantes pela cidade, não encontram mais a família. Em minha prática no Hospital Dia, a maioria ficava com a família e muitas das famílias participavam do tratamento. Era trabalhada até a possibilidade desses familiares permitirem uma maior autonomia aos pacientes", diz Lacet.
Já o presidente da ABP admite que há momentos em que a família fica perdida e abandona a vítima. "Qualquer situação de doença na família que as pessoas não sabem o que fazer, há desespero. A família que tem o doente mental em casa quebrando, não obedecendo nada, as pessoas precisam trabalhar, a situação fica insuportável. Chega em determinado momento que não tem ajuda em lugar nenhum", conta.
Aiello, por sua vez, tende a tirar a responsabilidade das famílias.
"Esta coisa de que a família abandona, de que família falamos? A família é abandonada. Esta dicotomia é falsa, a família também sofre. A família é tão desamparada como o doente. Este romantismo das pessoas falando da família é um discurso para a classe média" Tânia Aiello, professora da PUC-Campinas
Faltam políticas públicas?
Em uma pesquisa de 2010, a ABP dizia que o Brasil tinha 23 milhões de pessoas (12% da população) com alguma necessidade de atendimento em saúde mental. 5 milhões (3%) sofriam com transtornos mentais graves e persistentes. A situação, que para Russomanno leva muitos a ficarem abandonados na rua, é o que fez o candidato falar sobre a questão. E é consenso entre todos que é preciso melhorar o atendimento a quem sofre de distúrbios.
"O que a gente precisa é de políticas públicas. Ficou muito claro que as políticas públicas são ineficientes, não existem. Você pega uma família que tem uma pessoa com alguma deficiência mental. Se você não tiver uma política pública, ela é internada e depois de algumas horas é devolvida à casa dela. Geralmente mandam para casa e pedem que a família cuide", declara Russomanno.
Lacet, que trabalhou em um hospital do tipo, diz que não é bem assim. "Já é equivocado de novo. Se o paciente apresentou um quadro de agressividade, é internado, medicado e controlado e sai. Uma das possibilidades é sair para o Hospital Dia. Aí depende do caso, fazem atendimento por dias. Ele frequenta esse hospital até voltar para o tratamento ambulatorial e para a família. Neste período a família é atendida também em grupos terapêuticos. A gente tem sim estes equipamentos de Hospital Dia. Podem ser implementados outros? Tudo bem, concordo", diz.
Os Hospitais Dia citados por Lacet são estruturas em que o paciente pode ficar internado por um período que normalmente não é maior a 12 horas. São substitutos aos antigos manicômios. Eles podem frequentar todos os dias e à noite voltam para as suas famílias ou para uma ala hospitalar. O presidente da ABP, contudo, é crítico do atual sistema de saúde brasileiro para transtornos mentais.
O pobre não tem acesso, isso é absurdo. A gente tinha que dar ao pobre a mesma condição. Um modelo que não pode ser antigo, de hospital. Um modelo que não pode ser esse do CAPS. Tem que ter hospital? Sim. Tem que ter CAPS? Tem. Tem também que que ter ambulatórios, a pessoa faz a consulta e vai trabalhar. Enquanto não tiver acesso, como ela pode melhorar?" Antônio Geraldo da Silva
A campanha de Russomanno informa que a proposta do candidato é "tratar e apoiar a família para que eles possam lidar melhor com o doente para não retirar do convívio. Priorizar quem tem mais dificuldade para evitar o problema e buscar parcerias. Pretende expandir o atual formato porque o que é bom a gente mantém".
O Brasil definiu por lei no início do século o fim dos chamados manicômios, onde portadores de distúrbios mentais ficavam internados por anos - há relatos de que alguns ainda funcionam "disfarçados". Para o lugar, foram propostos acompanhamento psicológico e internações por uma quantidade de tempo limitada.
O que há no município
A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo afirma que "os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Unidades Básicas de Saúde (UBS), assim como os outros pontos de atenção à Saúde (Pronto Socorro, AMA, CECCO etc.), são porta de entrada para a área Saúde Mental dentro da SMS". A pasta diz ter 82 CAPS, sendo 25 deles Álcool e Drogas (AD), 31 CAPS Adulto e 26 CAPS Infanto-juvenil.
Os CAPS citados não fazem internação hospitalar, mas são locais com "equipes composta por médicos, psicólogos, assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional que avaliam o quadro clínico do usuário e indicam o tratamento adequado para cada caso". A secretaria informa que há 132 leitos de hospitalidade noturna em CAPS que funcionam 24 horas. A cidade ainda conta com 192 leitos de saúde mental em hospitais gerais municipais.
"Além disso, a Prefeitura possui 27 Residências Terapêuticas Especiais que são moradias para pessoas que saíram da internação/tratamento em comunidades terapêuticas conveniadas com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), de hospitais gerais ou conveniados, ou que passam por tratamento nos CAPS e estejam com vínculos familiares frágeis ou rompidos", diz a secretaria.
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