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Tragédia da pandemia atinge população indígena que vive em Manaus

Hospital de campanha montado para atendimento de índios em Manaus Imagem: Rosiene Carvalho/UOL

Rosiene Carvalho

Colaboração para o UOL, em Manaus

19/02/2021 01h55

Internado com covid-19, ao lado de um cilindro de oxigênio e em uma rede de pano, o indígena Anselmo Kokama, 62, não esquece o dia que sentiu os piores efeitos da doença e não conseguiu atendimento na rede pública em Manaus. Foi durante o pico da explosão de casos, que levou o Amazonas ao colapso do sistema de saúde.

"Quando cheguei aqui não me aguentava em pé. Já peguei malária três vezes em um ano. Mas nenhuma doença foi como essa", contou ao UOL.

Anselmo Kokama recebe atendimento em hospital de campanha montado por indígeinas Imagem: Rosiene Carvalho/UOL

Já sem febre e tosse, o Kokama conseguiu sobreviver graças ao Hospital de Campanha Indígena do Parque das Tribos, na periferia da capital amazonense. Ele estava internado havia mais de uma semana quando a reportagem esteve no local.

Os pacientes atendidos na UBS móvel, com a logo da Prefeitura de Manaus, procuram o hospital com estrutura simples, montado pelos indígenas, quando sentem os sintomas mais graves. O governo federal prometeu montar um hospital para indígenas, em abril de 2020, mas o plano não saiu do papel.

Em uma quadra aberta, com um telhado com goteiras coberto por lona, 11 profissionais de saúde, a maioria formada por indígenas, se revezam como voluntários. Com EPIs (equipamentos de proteção individual) e itens da cultura indígena —como colares e grafismos nas máscaras e pinturas de jenipapo em seus corpos —, eles conquistaram a confiança dos pacientes.

Um dos voluntários, Alfredo Kokama, 26 anos, mostra a todos o arco e flecha de artesanato que ele mesmo fez nos intervalos da entrega de alimentação aos pacientes. "Somos indígenas. Temos que ajudar nossos parentes."

Questionado se aceitaria uma vaga na rede pública, caso fosse oferecida a ele, o paciente Anselmo Kokama respondeu: "Nem com nojo". A expressão é usada em Manaus para negar com veemência uma oferta.

Está morrendo muita gente dessa doença lá [nos hospitais públicos]. Aqui, estou melhorando.
Anselmo Kokama, paciente

Com cerca de 700 famílias, o Parque das Tribos foi ocupado em 2014 e é o primeiro bairro indígena de Manaus. As famílias vivem sob constantes ameaças de despejo, em moradias precárias, sem asfalto, tratamento de esgoto e energia elétrica regular. Também falta um dos itens básicos à proteção contra o novo coronavírus: água.

Estudo feito por pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) aponta que, na primeira onda da pandemia, mais de 60% da comunidade foi infectada. Na ocasião, o grupo perdeu sua maior liderança, o cacique Messias Kokama, 53, para a covid-19.

Profissionais atendem em dias de folga

Os dias de folga do estudante e técnico de enfermagem da Casai (Casa de Saúde Indígena) em Manaus Francineldo Kokama, 45, e da técnica de enfermagem da rede pública estadual Vanda Ortega, da etnia Witoto, são dedicados aos doentes do Parque das Tribos.

O trabalho no hospital de campanha é voluntário, o da Casai rende a Francineldo um salário líquido de cerca de R$ 2.500.

Vanda, na primeira onda, monitorava os indígenas com sintomas de covid-19 da comunidade indo de casa em casa. O esforço quase a deixou em estafa física. Para a técnica, a sobrecarga seria menor e os pacientes melhor atendidos se houvesse boa vontade do poder público.

Quando a medida se fez necessária, paletes de madeira foram improvisados. "O que mais pedi é que me liberassem para trabalhar neste hospital. Isso prejudica muito o trabalho aqui e não atenderam", disse Vanda.

Hospital de campanha montado para atendimento de indígenas em Manaus Imagem: Rosiene Carvalho/UOL

Os profissionais pontuam que o leito em redes, por exemplo, atende à cultura indígena. Mas colchões permitiriam deitar pacientes de bruços, o que ajuda na oxigenação.

Convidada pelo Governo do Amazonas para ser a primeira indígena e profissional da saúde vacinada contra o coronavírus no estado, Vanda publicamente pediu apoio ao hospital de campanha e que os indígenas em contexto de cidade fossem incluídos na vacinação.

Ela também criticou a decisão do Ministério da Saúde de excluir os indígenas em contexto urbano do plano de imunização.

Eu aceitei ser a primeira para encorajar os nossos parentes que não querem tomar vacina nas aldeias. Questionei o governador por que não estamos nesse plano de vacinação, sendo que ele está na capital com a maior população indígena e não conhece essa realidade. Ele falou que não tem vacina para todo mundo.
Vanda Ortega, indígena e técnica de enfermagem

"Esta cidade foi construída sobre os nossos corpos, nossa história e continua de costas para os povos indígenas", disse a indígena.

A Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) aponta que até o dia 18 de fevereiro, de 570 óbitos de indígenas por covid-19 no país, 118 foram no Amazonas. Os números da Sesai ignoram os indígenas que vivem em contexto urbano, os mais expostos ao vírus.

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) afirma que o Amazonas soma 235 indígenas mortos. Mato Grosso, em segundo lugar, tem 152 óbitos. Manaus é a cidade com maior número de indígenas vítimas do coronavírus.

A Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), que monitora a região amazônica, aponta que dos 783 óbitos de indígenas, até o dia 18, 252 são do Amazonas. Os kokamas, em maior número em contexto urbano, são a população mais atingida com mortes.

Coiab e Apib acusam subnotificação nos números oficiais por causa de racismo institucional. Outra denúncia é que indígenas em contexto urbano estão sendo atendidos e enterrados como "pardos". Os dados das organizações são apurados junto às lideranças indígenas do País.

O que dizem os governos

Procurado, o Ministério da Saúde respondeu jogando a responsabilidade de atenção aos indígenas de área urbana para os municípios.

A Prefeitura de Manaus informou que atua apenas na baixa complexidade e que instalou no Parque das Tribos uma unidade móvel que oferece testes e diagnósticos à população.

O governo do Amazonas disse que não atua na iniciativa dos indígenas no hospital de campanha e que faz uso da regra estabelecida pelo Ministério da Saúde que indígenas "não aldeados" devem fazer uso da rede pública disponibilizada à população em geral.

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