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Explosão migratória gera insatisfação e agita comércio na fronteira do Acre

Francisco Jerônimo, comerciante de Brasileia (AC) que atende haitianos - João Fellet/BBC Brasil
Francisco Jerônimo, comerciante de Brasileia (AC) que atende haitianos Imagem: João Fellet/BBC Brasil

16/04/2013 06h45

Sob a sombra de uma árvore numa praça da pequena Brasileia (AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru, moradores levantavam hipóteses para um misterioso acontecimento do mês anterior: por dois dias seguidos, o cemitério da cidade amanheceu com túmulos violados e dois crânios sumiram dos caixões.

"Só pode ter sido coisa de haitiano", diz o aposentado Osvaldo, referindo-se aos cerca de 1.300 imigrantes da ilha caribenha que vivem na cidade à espera de vistos para ingressar no país. "Eles já estão tão à vontade aqui que começaram até a fazer magia negra, vodu, aquelas coisas que eles fazem lá no país deles".

Embora a polícia avalie que o caso -- tipificado no Código Penal como vilipêndio de cadáver -- foi provavelmente obra de alunos de medicina de Cobija, cidade no lado boliviano da fronteira, a história se somou às queixas de moradores locais contra o crescente número de imigrantes em Brasileia.

Por ora, não há registro de conflitos graves entre habitantes locais e estrangeiros. Mas a solidariedade com que os residentes acolheram as primeiras levas de haitianos, entre o fim de 2010 e início de 2011, tem dado lugar à irritação e até a comportamentos xenofóbicos.

"Ninguém sabe a procedência desse povo", diz à BBC Brasil Aparecido, dono de uma loja de roupas. "Sabemos que o país deles tem epidemia de cólera, hepatite, aids. Eles não têm controle de nada, não fazem prevenção sexual."

Ele ressalta, porém, que não é contra a vinda do grupo ao país. "O Brasil é grande, tem espaço para muita gente, mas o município de Brasileia não tem espaço para essa quantidade de pessoas que estão aqui hoje".

Segundo estimativa do governo local, os imigrantes já representam 10% da população urbana de Brasileia, município com cerca de 20 mil habitantes. O grupo é formado sobretudo por haitianos, mas recentemente a cidade passou também a receber imigrantes africanos (há 72 senegaleses e dois nigerianos ali), da República Dominicana e até de Bangladesh.

Quase todos chegaram ao Brasil seguindo uma rota inaugurada pelos haitianos. Após voarem até o Equador, viajam de ônibus para o Peru e, de lá, cruzam a fronteira em Assis Brasil (AC). Vão, então, para o município vizinho de Brasileia, maior cidade da região fronteiriça e onde o governo estadual concentra sua assistência humanitária.

Lá, enquanto aguardam pelo visto, dormem num abrigo -- um clube esportivo desativado cuja capacidade ideal é para 200 pessoas. Lá recebem três refeições diárias, vacinas e atendimento médico. Todos podem circular livremente pela cidade e pelo município adjacente de Epitaciolândia.

Tratados com prioridade pelo governo, os haitianos geralmente recebem seus documentos em algumas semanas ou até dias.

Alguns então partem para outras regiões do país em busca de emprego, enquanto outros esperam por empresários que venham contratá-los. Mulheres e idosos têm tido mais dificuldade para encontrar trabalho e deixar o abrigo. Já entre os imigrantes de outros países, a espera pode se arrastar por meses.

Num salão de beleza a duas quadras do abrigo em Brasileia, uma gerente de vendas que não quis ter seu nome citado acrescenta outros itens à lista de reclamações dos moradores.

"Ninguém mais quer usar a academia pública no parque", diz ela. "Eles estão urinando e defecando no gramado à noite."

Até a semana passada, os cerca de 1.300 imigrantes tinham apenas dois banheiros no abrigo. Desde então, o governo estadual instalou 30 banheiros químicos no local.

A gerente de vendas diz ainda que os haitianos estão sobrecarregando os serviços na cidade e que moradores têm tido dificuldade para agendar consultas médicas. "Você vai na lan house, no banco, no Correio, na papelaria e só dá eles. O problema é que estão vindo muitos, e eles estão dominando a cidade." 

A manicure Leuda Reis, que trabalha no salão, diz já ter atendido clientes haitianas. "Como elas estão acostumadas a ganhar as coisas aqui no Brasil, querem que a gente faça tudo quase de graça. Elas têm dinheiro, mas não querem pagar um valor justo."

Um mototaxista faz queixa similar: afirma que, acostumados à economia informal no Haiti, eles tentam pechinchar as corridas. "Já nem pego mais haitiano", diz, citando ainda a dificuldade para compreender sua língua -- a maioria fala apenas creole.

Mais vendas

Mas nem todos estão insatisfeitos com a crescente população estrangeira na região. Em Epitaciolândia, o bar do comerciante José Batista passou a ter senegaleses como principal clientela. Há dois meses à espera de vistos, os 72 imigrantes do país africano elegeram o local para petiscar ou variar as refeições.

"No abrigo é sempre a mesma comida, estávamos enjoados", diz Balla Tacko, que pretende montar uma loja em São Paulo se receber seu visto.

No bar, eles consomem principalmente espetinhos de carne, por R$ 1 cada. Álcool, jamais -- bebidas são vetadas pelo Islã, a fé seguida por todo o grupo.

Batista conta que, ao contrário de muitos clientes locais, os senegaleses "não dão trabalho e são tudo gente boa."

Para mantê-los, ele lhes oferece descontos e permite que preparem a comida ao seu jeito. "Eles gostam do sabor bem forte, com muita pimenta", explica.

Perto do alojamento em Brasileia, o comerciante Francisco Jerônimo também tem tirado proveito do maior fluxo de imigrantes.

No domingo, enquanto vendia doces e refrigerante a um grupo de haitianos, uma moradora se aproximou do balcão e lhe perguntou, com cara de nojo, como estava fazendo para lidar "com toda essa gente".

"Essa gente dobrou as minhas vendas", respondeu. Mas acrescentou, pondo-se em acordo com a residente: "Só tenho medo das doenças que eles trazem junto".