Erundina diz que Comissão da Verdade foi covarde em não enfrentar militares
A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), que desde 2011 tenta emplacar no Congresso uma revisão da Lei da Anistia com punição aos acusados de repressão durante a ditadura, acredita que a CNV (Comissão Nacional da Verdade) "traiu os movimentos sociais" e foi "covarde" ao não enfrentar os militares.
Aos 80 anos, a socialista expressou à "BBC Brasil" suas críticas ao que chamou de "processo extremamente fechado" da comissão, que não envolveu a sociedade na construção de seu parecer final.
Ela se emocionou ao se lembrar de amigos desaparecidos nos governos militares e afirmou que a CNV não representa esperanças para a punição de envolvidos em crimes de tortura. "Não podemos nos enganar e achar que o dever histórico do Estado está garantido com este relatório. Não está. O governo brasileiro continua em dívida com as vítimas da ditadura militar", disse Erundina.
A parlamentar acredita que as conclusões da Comissão, que saem nesta quarta-feira (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos, são "só mais um relatório que vai para o Arquivo Nacional".
Suas declarações representam uma voz crítica no ambiente de esquerda em relação às investigações da comissão, que se propõe a reacender o debate sobre crimes como tortura, assassinato e ocultação de cadáveres durante os governos militares, entre 1964 e 1985.
"Todo o processo da comissão foi extremamente fechado", critica Erundina. "Ninguém teve acesso. Este relatório nunca poderia ser divulgado sem haver uma discussão de avaliação com comitês do país inteiro que levantaram dados e devem ter contribuído com as principais informações deste relatório", afirmou. "Por isso, na minha visão, os movimentos sociais foram traídos pela Comissão da Verdade."
"Covardia"
Segundo a parlamentar, o surgimento da Comissão, em 2012, fomentou a criação de dezenas de comitês independentes em universidades, sindicatos, organizações sociais, assembleias e câmaras legislativas para investigações regionais de violações durante a ditadura. "O único ponto positivo (da Comissão) é este saldo organizativo que ficou na sociedade", afirma.
Para Erundina, entretanto, a estrutura da CNV não estimulou a população a "tomar as ruas" pela criminalização de atos violentos promovidos por militares ou agentes do Estado. "Não tomou as ruas. A força dos militares continua muito forte. As restrições à participação da sociedade e dos familiares no acompanhamento da comissão tem a ver com a covardia dos membros desta comissão em enfrentar os militares", afirmou.
A ex-prefeita de São Paulo prossegue: "Nestes dois anos e meio, a comissão funcionou de maneira fechada. Suas audiências públicas não eram públicas de verdade. Os encontros com os acusados pelos crimes foram feitos em sua maioria de forma reservada, privada, sem a presença das vítimas, familiares e cidadãos diretamente interessados nesta busca."
Por isso, Erundina diz entender a Comissão da Verdade como um projeto de "reconciliação" entre civis e militares, suscetível a pressões externas, e não pela "verdade e punição de quem realmente lesou o país".
"O objetivo deveria ser a justiça, mas a comissão não tenta impedir a impunidade, que mantém a ditadura viva e se reproduzindo nas delegacias, na repressão policial a cidadãos pobres nas periferias", afirma.
"Não podemos nos enganar e achar que o dever histórico do Estado está garantido com este relatório. Não está. O governo brasileiro continua em dívida com as vítimas da ditadura militar", continua a deputada.
Revisão
A Lei da Anistia prevê perdão a todos que "cometeram crimes políticos ou conexos", definidos como "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".
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- http://noticias.uol.com.br/enquetes/2014/12/09/o-brasil-deve-punir-quem-cometeu-crimes-na-ditadura.js
É contra a interpretação de que os crimes como tortura seriam atos conexos que Erundina luta desde 2011, quando propôs no Congresso Nacional a "interpretação autêntica" (ou revisão) desta lei, promulgada em 1979. "Os civis já pagaram pelo que cometeram sob tortura, sob violência", diz, se referindo a membros de organizações que se utilizaram de métodos violentos contra o regime militar.
Para a deputada, os civis "também cometeram excessos", mas teriam pagado por eles na justiça ao passarem por prisões e serem vítimas de abusos contra a vida, como atos de tortura.
"O que querem mais contra estas pessoas? Os autores dos crimes não pagaram nada. Uma lei de anistia não pode admitir crimes de lesa-humanidade como os que foram cometidos. Essas pessoas não podem ter direito a perdão."
Corte
Erundina lembra que, em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em julgamento sobre abusos cometidos por militares durante a ditadura. Ela cobra o cumprimento desta decisão internacional.
Dezoito anos antes, o Brasil aderiu à Convenção Americana, o que pressupõe o cumprimento de suas decisões. Entretanto, para juristas como Ives Gandra, nenhuma decisão internacional pode sobrepor decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que já se colocou contra a revisão da anistia.
A deputada discorda. "Quem defende dessa forma, usando a formalidade da lei e filigramas de vírgulas da legislação, faz uma opção contra a vida, a liberdade e a democracia. Eu não me conformo."
Ela se emociona ao lembrar dos "anos de chumbo", quando precisou "sair correndo" da Paraíba, seu estado natal, para São Paulo. "Tive meus momentos. Fui perseguida em vários sentidos e resisti como pude. Mas não posso nem me colocar diante daqueles que sofreram torturas, abusos sexuais, violência sobre sua dignidade. Sobretudo as mulheres, que foram vítimas pela sua natureza de mulher, mães cujos filhos pequenininhos assistiram à sua tortura, mães que assistiram aos filhos pequenininhos sendo torturados", diz.
Ela finaliza a conversa com a voz trêmula. "Isso precisa mexer com o sangue dessas pessoas. A mente, a alma e o coração dessas pessoas... Acho que perdi o racional agora. Me desculpe se me emocionei."
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