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A Alemanha é grande, e os seus soldados não são agentes de caridade

Anne Applebaum

09/06/2010 01h23

Na semana passada, o presidente da Alemanha renunciou ao cargo. Sem aviso. “Eu declaro a minha renúncia do cargo de presidente”, anunciou o presidente Horst Köhler. “A minha decisão entra em vigor imediatamente”. Após estas palavras, ele foi embora.

Köhler afirmou que estava apenas respondendo a críticas: o presidente havia sido duramente atacado devido aos comentários que fez durante uma viagem ao Afeganistão no mês passado, e ele sentiu que não poderia continuar no cargo. O presidente alemão é uma figura cerimonial, eleita pelo parlamento, e teoricamente ele não deveria dar nenhuma declaração polêmica. Ao ser acusado de violar essa convenção, ele renunciou.

Até aí, nada de extraordinário. Mas antes que você dê de ombros e diga, “Isso poderia ter acontecido em qualquer país”, leia aquilo que Köhler de fato disse: “Um país do nosso tamanho, com o seu foco em exportações e, portanto, dependente do comércio internacional, tem que ter consciência de que o envio de forças militares é necessário em uma emergência para proteger os nossos interesses”.

Nos Estados Unidos, no Reino Unido ou na França ninguém teria sequer percebido tal declaração. Mas, em se tratando da Alemanha, Köhler quebrou dois grandes tabus. Primeiro, ele admitiu que as forças armadas alemães estão no Afeganistão com um objetivo militar, tendo desta forma abalado mais uma vez a crença da população alemã de que os seus soldados fazem serviços de caridade (Combater é para os norte-americanos. Os alemães constroem estradas). Em setembro do ano passado, essa ficção foi literalmente explodida, quando tropas militares alemãs em Kunduz solicitaram ataques aéreos norte-americanos, que acabaram matando cerca de 90 civis afegãos.

A população alemão ficou furiosa com esse erro, mas foi muito mais perturbador descobrir que as tropas alemãs algumas vezes solicitam ajuda às forças armadas dos Estados Unidos. Isso significa que a Alemanha é na verdade parte de uma coalizão que está travando uma guerra – um fato que poucos políticos alemães jamais tiveram a coragem de informar aos eleitores. Há uns dois anos, no Afeganistão, eu conheci um militar alemão que pilotava um avião de Cabul até a região mais perigosa no sul do país. Ele se recusou a fornecer o nome a um jornalista alemão que viajava comigo, alegando que, teoricamente, os alemães não deveriam estar voando para o sul do Afeganistão – ainda que as circunstâncias e as exigências da aliança às vezes os obriguem a fazer isso – e ele não queria dar início a uma controvérsia.

Mas a segunda declaração de Köhler foi pior: ao afirmar que a Alemanha é um grande país com um grande setor de exportação e interesses econômicos espalhados pelo mundo todo, Köhler quebrou aquele tabu ainda mais poderoso que proíbe os políticos alemães de mencionarem qualquer utilização das suas forças armadas, em quaisquer circunstâncias, em um conflito estrangeiro. A passividade da Alemanha é uma questão de orgulho nacional. O pacifismo alemão está escrito na constituição do país, e os alemães não gostam de se referir a si próprios usando expressões como “um país do nosso tamanho”. Quando estão em companhia de pessoas educadas, os alemães jamais falam algo como usar as forças armadas “em uma emergência para proteger os nossos interesses”.

No entanto, à medida que o tempo passa, a Segunda Guerra Mundial vai ficando para trás nas páginas da história e até mesmo a Guerra Fria vai se tornando uma memória distante, a maneira convencional da Alemanha de falar de si própria está se tornando cada vez mais irreal. Na verdade, a Alemanha é de fato um grande país, o maior da Europa. Quando a Grécia viu-se em apuros e o euro teve que ser salvo, foi a Alemanha que tomou as principais decisões, e foi a Alemanha que fez pressões intensas pela implementação de reformas econômicas draconianas naquele país mediterrâneo. Se o resultado disso for negativo, é bem possível que a Alemanha seja responsabilizada pelo fracasso.

A Alemanha possui de fato vários interesses econômicos fora da Europa, incluindo aqueles em diversos países que poderiam muito bem representar desafios militares para o Ocidente no futuro. O Irã, país no qual a Alemanha é um dos maiores investidores estrangeiros, vem à mente na mesma hora, assim como a China e a Rússia. Em uma guerra entre iranianos e israelenses, a pacifista Alemanha manter-se-ia neutra? E se a China atacasse Taiwan, ou se a Rússia entrasse em guerra com a Ucrânia?

Eu não estou sugerindo que quaisquer desses conflitos devessem ocorrer ou que ocorrerão, e tampouco eu desejaria necessariamente que a Alemanha participasse deles. Eu não quero que a Alemanha se rearme, que ela vá à guerra e tampouco que compre brigas com nenhum outro país. Mas a mim parece de fato estranho que o presidente de um país cuja economia depende das exportações – incluindo exportações para regimes autoritários e militaristas – não tenha a permissão para avaliar em voz alta as possíveis consequências militares das suas políticas econômicas. Os norte-americanos às vezes cometem o erro de achar que para todo conflito há uma solução militar. Mas fingir que nenhum conflito jamais terá uma solução militar é uma visão igualmente míope. E é perigoso não se poder sequer falar sobre esse assunto.