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Corte orçamentário no Reino Unido deve ser austero

Anne Applebaum

15/09/2010 00h02

“Cortes perversos”. “Cortes selvagens”. “Cortes severos”. A linguagem que os britânicos usam para descrever a nova política de redução de gastos de seu governo é apocalíptica ao extremo. Os ministros encarregados das finanças do país são conhecidos como “machadeiros” que “cortarão” o orçamento. Artigos sobre as finanças do país estão recheados de referências a sangue, facas e amputação.

Corte orçamentário desacelerará economia britânica, diz estudo

A recuperação da economia britânica se desacelerará na segunda metade do ano por causa da queda do clima de confiança que gerou nas empresas o drástico programa de cortes de despesa do Governo.

Assim se afirma em um estudo elaborado pelos institutos de contabilidade ICAEW e Grant Thornton, que indica que, com relação ao segundo trimestre do ano, há quase 20% mais de empresas que duvidam da solidez da recuperação da economia.

E os britânicos adoram. A austeridade não está só sendo vendida como a solução para as aflições econômicas dos britânicos; também está sendo descrita como a resposta para as falhas morais do país. Em 20 de outubro, o governo anunciará um corte de 128 bilhões nos gastos, e muitos parecem bem animados com isso. Certo, os sindicatos não estão tão animados assim, mas Nick Clegg, vice-premiê e líder dos liberais democratas – o menor partido na coalizão do governo – está radiante. Recentemente, ele fez um discurso no qual explicava que escolhas difíceis deveriam ser feitas, de forma que “poderemos olhar nos olhos de nossos filhos e netos e dizer que fizemos o melhor para eles”.

Clegg continuou explicando que sua própria geração, nascida nos anos 1960, entendeu tudo errado: “Nós aumentamos as dívidas, destruímos o planeta, e permitimos que muitas de nossas instituições desaparecessem”. Em compensação, o futuro orçamento de austeridade de seu governo valorizará a política do “longo prazo” em detrimento da política do “curto prazo” e eliminará “o peso morto de nossa dívida e nossas falhas” de forma que gerações futuras possam prosperar. “Acho que foi uma atriz de Hollywood”, brincou Clegg, “quem disse que hoje em dia gratificação imediata não é rápida o suficiente para algumas pessoas”.

Na verdade Meryl Streep disse isso, em um filme de 1990 (“Lembranças de Hollywood”, caso interesse). Mas ela não estava falando dos sinceros britânicos que votaram em Clegg e em David Cameron, seu parceiro conservador de coalizão. Para esses eleitores, a própria ideia de gratificação imediata é um anátema, pelo menos na teoria. E eles elegeram esse governo porque se convenceram de que se cansaram disso.

A austeridade, em compensação, tem um grande apelo. A austeridade é o que tornou grande o Reino Unido. A austeridade é o que ganhou a guerra. Não deve ser por acaso que vários canais de TV britânicos estão passando programas este ano com temas como “O Espírito de 1940”, todos dedicados ao 70º aniversário daquele “ano notável” de racionamentos, sirenes de ataques aéreos e privações. Uma série chamada “Ration Book Britain” é dedicada à parcimoniosa culinária daquela era. “Com bacon, ovos e açúcar racionados, os cozinheiros da época de guerra tinham de ser muito engenhosos”, explica uma propaganda do programa. Seu apresentador promete “recriar as receitas que mantinham o país em forma de combate”.

Às vezes a profundidade da divisão cultural anglo-americana se revela de formas inesperadas, e este é um desses momentos: nenhum programa de culinária que mostrasse carne enlatada e ovos em pó teria chance de ir ao ar nos Estados Unidos. Talvez por razões parecidas, ninguém está falando sobre austeridade nos Estados Unidos. Pelo contrário, os republicanos ainda estão mirando os cortes nos impostos, e os democratas ainda estão defendendo um aumento nos gastos. Quase ninguém – nem Paul Krugman, nem Newt Gingrich – fala com entusiasmo sobre cortes orçamentários. Em vez disso, nossos políticos usam eufemismos para “eliminar desperdícios” ou “tornar o governo mais eficiente”, como se nunca ninguém tivesse pensado nisso antes.

Apesar do profundo choque que o país supostamente sofreu durante a crise dos bancos de 2008 e da recessão de 2008-2009, nós estamos, em outras palavras, muito longe ainda da “política de longo prazo” de Clegg. Não ouço ninguém nos Estados Unidos falando sobre cortes no Medicare, Medicaid ou Previdência Social, os maiores itens orçamentários (embora as pensões “privadas” agora pareçam muito mais seguras – mesmo quando se levam em conta flutuações no mercado de ações – do que aquelas que dependerão completamente de um orçamento federal falido daqui a 20 anos). No Reino Unido, em compensação, tudo está na mesa: pensões, benefícios de moradia, pagamentos por invalidez, isenções de impostos.

A política explica parte dessa diferença, mas acredito que a História explique ainda mais. O último período de verdadeira privação nacional do qual os americanos devem se lembrar foi nos anos 1930, distante demais para quase todos que estão vivos hoje. Mas o racionamento no Reino Unido durou até boa parte dos anos 1950, tempo o suficiente para marcar a infância de muitos políticos que hoje estão no poder. Britânicos nostálgicos, ansiosos por recriar o melhor momento de seu país, se lembram das parcimônias e das economias do pós-guerra. Americanos nostálgicos em busca do melhor momento de seu país se lembram da abundância do pós-guerra, do longo boom consumista – e, sim, de uma época em que nem gratificação imediata era rápida o suficiente.