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Desigualdade também chama a atenção nos países ricos

Paul Krugman

03/01/2015 00h01

Em 2014, a crescente desigualdade nos países ricos finalmente recebeu a atenção merecida, quando "O Capital no Século 21", de Thomas Piketty, se tornou um best-seller surpresa (merecidamente). Os suspeitos habituais ainda estão em negação bem remunerada, mas, para todos os demais, está óbvio que agora renda e riqueza estão mais concentradas no topo do que jamais estiveram desde a Era Dourada –e a tendência não exibe nenhum sinal de ceder.

Mas essa é uma história sobre desdobramentos dentro das nações, e, portanto, incompleta. É realmente necessário complementar a análise ao estilo de Piketty com uma visão global, e ao fazê-lo, eu argumentaria, você obtém um senso melhor do que há de bom, de ruim e de potencialmente terrível no mundo em que vivemos.

Assim, permita-me sugerir que você dê uma olhada no notável gráfico de ganhos de renda ao redor do mundo, produzido por Branko Milanovic, do Centro de Pós-Graduação da Universidade Municipal de Nova York (ao qual me juntarei na metade deste ano). O que Milanovic mostra é que o crescimento da renda desde a queda do Muro de Berlim tem sido uma história de "picos gêmeos". É claro que as rendas subiram no topo, com a elite mundial se tornando ainda mais rica. Mas também ocorreram ganhos imensos para o que poderia ser chamado de classe média global --principalmente as crescentes classes médias da China e Índia.

E vamos deixar claro: o crescimento da renda nos países emergentes produziu ganhos imensos em bem-estar humano, retirando centenas de milhões de pessoas da miséria e lhes dando uma chance de uma vida melhor.

Agora a má notícia: entre esses picos gêmeos --a elite global cada vez mais rica e a crescente classe média chinesa-- se encontra o que poderíamos chamar de vale de desalento: as rendas cresceram muito pouco, se é que cresceram, para as pessoas em torno do 20º percentil da distribuição mundial de renda. E quem são essas pessoas? Basicamente, as classes trabalhadoras dos países ricos. E apesar dos dados de Milanovic irem apenas até 2008, é possível termos certeza que a situação desse grupo piorou ainda mais desde então, abalada pelos efeitos do alto desemprego, da estagnação dos salários e das políticas de austeridade.

Além disso, os apuros dos trabalhadores nos países ricos são o outro lado dos ganhos acima e abaixo. A concorrência das exportações das economias emergentes certamente é um fator depressor nos salários nos países mais ricos, apesar de provavelmente não a força dominante. Mais importante, a elevação da renda no topo foi conseguida, em grande parte, espremendo as rendas abaixo: reduzindo salários, cortando benefícios, esmagando sindicatos e desviando uma crescente parcela dos recursos nacionais para esquemas financeiros.

Talvez ainda mais importante, os ricos exercem um efeito vastamente desproporcional sobre as políticas. E as prioridades da elite --preocupação obsessiva com déficits orçamentários, com a suposta necessidade de cortar programas sociais-- contribuíram muito para tornar ainda mais fundo o vale de desalento.

Logo, quem fala por aqueles deixados para trás nesse mundo de dois vales? Seria possível esperar que os partidos convencionais de esquerda assumiriam uma posição populista em prol de suas classes trabalhadoras domésticas. Mas em vez disso o que se tem --de líderes que variam de François Hollande, na França, a Ed Milliband, no Reino Unido, e, sim, Barack Obama-- é um resmungo desajeitado. (Na verdade, Obama fez muito para ajudar os trabalhadores americanos, mas ele é notavelmente ruim em defender suas causas.)

O problema com esses líderes convencionais, eu argumentaria, é que eles temem desafiar as prioridades da elite, em particular a obsessão com os déficits orçamentários, por temer serem considerados irresponsáveis. E isso deixa o campo aberto para líderes não convencionais --alguns deles altamente assustadores-- que estão dispostos a tratar da revolta e desespero dos cidadãos comuns.

Os esquerdistas gregos que podem chegar ao poder ali neste mês são supostamente os menos assustadores desse grupo, apesar de suas exigências de redução da dívida e fim da austeridade poderem provocar um tenso impasse com Bruxelas. Em outros lugares, entretanto, nós vemos a ascensão de partidos nacionalistas, anti-imigrantes, como a Frente Nacional na França e o Partido da Independência do Reino Unido --e há pessoas ainda piores no aguardo.

Tudo isso sugere algumas analogias históricas desconfortáveis. Lembre-se, esta é a segunda vez que temos uma crise financeira global seguida por uma desaceleração econômica mundial prolongada. Naquela vez, como agora, todas as respostas eficazes para a crise foram bloqueadas pelas exigências da elite de orçamentos equilibrados e moedas estáveis. E o resultado foi a entrega do poder para as mãos de pessoas que eram, digamos, não muito agradáveis.

Eu não estou sugerindo que estamos à beira de repetir plenamente os anos 30. Mas eu argumentaria que os líderes políticos e de opinião precisam aceitar a realidade de que nossa configuração global atual não está funcionando para todos. Ela é boa para a elite e fez muito bem para os países emergentes, mas aquele vale de desalento é muito real. E coisas ruins acontecerão se não fizermos algo a respeito.