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Seca "empurra" agricultores para a revolução síria

Thomas L. Friedman

Em Tel Abyad (na Síria)

21/05/2013 06h00

Acabo de passar um dia nesta cidade do nordeste da Síria. Foi aterrorizante, muito mais do que eu esperava, mas não por termos sido ameaçados de alguma forma pelos soldados do Exército Livre da Síria, que nos mostraram o lugar, ou pelos combatentes islamistas Jabhet al-Nusra, que ficaram escondidos nas sombras. Foi a escola local que me abalou.

Enquanto voltávamos para a fronteira turca, observei uma escola e pedi para o motorista que nos levasse até lá, para eu poder explorá-la. Estava vazia –de estudantes. Mas os refugiados de guerra haviam ocupado as salas de aula e as camisas e calças das crianças estavam penduradas em uma linha que atravessava o pátio. A cesta de basquete estava enferrujada e um dos pais da região nos mostrou os banheiros, que ele descreveu como nojentos. Não havia aulas há dois anos. E foi isso que me aterrorizou. Com homens armados estou acostumado. Mas crianças sem livros, sem professores ou aulas por um longo tempo, isso é um problema. Um grande problema.

Eles crescem em meio a muitas armas e com muito tempo livre, e vi muitos deles em Tel Abyad. Agora, eles são a lei, mas não há dois com o mesmo uniforme e muitos usam apenas jeans. Esses meninos se uniram com bravura aos adultos de sua cidade para libertá-la da tirania assassina de Bashar al-Assad. Atualmente, porém, a guerra se tornou um impasse. Então aqui, como em muitas outras cidades pela Síria, a vida está congelada em uma terra de ninguém, entre a ordem e o caos. Há apenas suficiente ordem para as pessoas viverem –algumas famílias têm até destiladores para refinarem o óleo cru e obterem gasolina para manter os carros rodando-, mas não há ordem suficiente para realmente reconstruir a cidade, enviar crianças para a escola e inaugurar negócios.

Então, a Síria como um todo, lentamente, está sangrando até a morte, de ferimentos auto infligidos. É impossível não se perguntar se algum dia este será um país unificado novamente e que tipo de desastre humano ocorrerá aqui se toda uma geração crescer sem escolas.

“A Síria está se tornando a Somália”, disse Zakaria Zakaria, sírio de 28 anos que fez graduação em inglês e foi nosso guia. “Os alunos já perderam dois anos de escola e não há luz no fim do túnel. Se isso continuar por mais dois anos, seremos como a Somália, um país falido. Mas a Somália está lá no Oceano Índico. A Síria está no coração do Oriente Médio. Não quero que isso aconteça com meu país. Quanto mais tempo demorar a guerra, pior será.”

Esta é a agonia da Síria hoje. Não dá para imaginar mais um ano de guerra aqui, muito menos cinco. Mas quando se sente a profundidade da revolta contra o governo Assad e se contempla a esporádica, porém bárbara, violência sectária, não é possível imaginar um acordo de paz que se sustente –não sem a presença de soldados de paz internacionais. Eventualmente, teremos que ter essa conversa, porque esta não é uma guerra comum.


Este desastre sírio é como uma enorme tempestade. É o que acontece quando um evento climático extremo, a pior seca na história moderna da Síria, se combina com uma população em rápido crescimento e um regime repressor e corrupto, liberando paixões extremadas sectárias e religiosas, financiadas por poderes externos rivais –Irã e Hezbollah de um lado e Arábia Saudita, Turquia e Qatar do outro, cada um com interesse extremo que seus aliados sírios derrotem os aliados dos outros- tudo isso enquanto os EUA, em sua fase pós-Iraque/Afeganistão, estão extremamente cautelosos para não se envolverem.

Vim aqui para escrever minha coluna e trabalhar em um filme da série Showtime, “Years of Living Dangerously”, sobre a “Jafaf”, a seca, um dos principais motores da guerra síria. Em uma era de mudança climática, é provável que veremos mais desse tipo de conflito.

“A seca não causou a guerra civil da Síria”, disse o economista sírio Samir Aita, mas acrescentou que o fracasso do governo em responder à seca teve um enorme papel em fomentar o levante. O que aconteceu, explicou Aita, foi que depois que Assad assumiu, em 2000, ele abriu o regulado setor agrícola para os grandes fazendeiros, muitos deles laranjas do governo, e permitiu que comprassem terras e usassem tanta água quanto quisessem, eventualmente reduzindo severamente o lençol freático. Isso começou a expulsar os pequenos produtores de suas terras para as cidades, onde tiveram dificuldades em encontrar trabalho.

Por causa da explosão demográfica iniciada nos anos 80 e 90, graças a um sistema de saúde melhorado, aqueles que deixaram o campo vieram com enormes famílias e se estabeleceram em satélites em torno de grandes cidades, como Aleppo. Algumas dessas cidades satélites incharam de duas mil pessoas para 400.000 em uma década. O governo não forneceu escolas, empregos ou serviços para essa turma de jovens, que chegava à sua adolescência e início da fase adulta quando a revolução irrompeu.

Entre 2006 e 2011, cerca de 60% das terras sírias foram arrasadas pela seca e, com o lençol freático já baixo demais e a irrigação por rio reduzida, 800.000 lavradores e criadores sírios perderam seu modo de vida, segundo a ONU. Na última década, “metade da população da Síria entre o Tigre e o Eufrates deixou o campo” em direção às zonas urbanas, disse Aita. Assad nada fez para ajudar os refugiados da seca, e muitos agricultores simples e seus filhos se politizaram. “O Estado e o governo foram inventados nesta parte do mundo, na antiga Mesopotâmia, precisamente para administrar a irrigação e o cultivo”, disse Aita, “e Assad fracassou nesta tarefa básica”.

Jovens e lavradores com fome de emprego –e a terra com fome de água- foram a receita para a revolução. É só perguntar para aqueles que aqui estavam. Comecemos por Faten, com quem conversei em seu apartamento simples em Sanliurfa, uma cidade turca perto da fronteira da Síria. Faten, 38, sunita, fugiu para cá com seu filho Mohammed, 19, membro do Exército Livre da Síria, que foi seriamente ferido em um tiroteio há poucos meses. Criada na aldeia rural de Mohasen, Faten, que me pediu para não usar seu último nome, me contou sua história.

Ela e o marido “tinham terras”. “Plantávamos cultivos anuais. Tínhamos trigo, cevada e comida para o dia-a-dia –vegetais, pepinos, tudo o que pudéssemos plantar em vez de comprar no mercado. Graças a Deus, havia chuva e as colheitas eram boas, antes. Depois, subitamente, veio a seca.”


Como era? “Ver aquela terra nos deixava muito tristes”, disse ela. “Parecia um deserto, parecia sal.” Ficou tudo amarelo.

E o governo de Assad ajudou? “Não fizeram nada”, disse ela. “Pedimos ajuda, mas eles não ligaram. Eles não deram a menor atenção ao assunto. Nunca, nunca. Tivemos que resolver nossos problemas sozinhos.”

Então o que vocês fizeram? “Quando veio a seca, nos viramos por dois anos e depois dissemos ‘basta’. Então, decidimos mudar para a cidade. Eu peguei um emprego público de enfermeira e meu marido abriu uma loja. Foi duro. A maioria das pessoas deixou a aldeia e foi para a cidade em busca de emprego, qualquer coisa para comer.” A seca foi particularmente dura para os jovens que queriam estudar ou se casar e não podiam mais fazer nenhum dos dois, acrescentou. As famílias casaram suas filhas mais cedo porque não podiam mais sustentá-las.

Faten, com a cabeça conservadoramente coberta por um lenço preto, disse que a seca e a total falta de governo a tornaram radical. Então, quando houve o primeiro vento de protesto revolucionário na pequena cidade Dara’a, no sul da Síria, em março de 2011, Faten e outros refugiados da seca correram para participar. “Desde o primeiro grito de ‘Allahu akbar’, todos nós entramos para a revolução, no mesmo instante.” Isso foi por causa da seca? “É claro”, disse ela, “a seca e o desemprego foram importantes em levar as pessoas para a revolução”.

Zakaria era adolescente e morava na província próxima de Hasakah quando a seca chegou. Ele se lembra da forma como os lavradores orgulhosos, mestres de seus pequenos pedaços de terra, viraram trabalhadores humilhados, recebendo diárias reduzidas nas cidades “só para ter dinheiro para comer”. O que foi mais revoltante para muitos, disse Zakaria, foi que, se quisessem um emprego fixo no governo, tinham que subornar um burocrata ou conhecer alguém na agência de inteligência estatal.

Os melhores empregos na província de Hasakah, região produtora de petróleo da Síria, estavam nas petrolíferas. Os refugiados da seca, quase todos sunitas, só podiam sonhar em ser contratados ali. “A maior parte desses empregos foi para os alawitas de Tartous e Latakia”, disse Zakaria, referindo-se à minoria à qual pertence o presidente Assad e que se concentra nessas cidades costeiras. “Isso deixou as pessoas ainda mais revoltadas. Os melhores empregos em nossas terras, em nossa província, não eram para nós, e sim para pessoas de fora.”

Foi somente na primavera de 2011, depois dos levantes na Tunísia e no Egito, que o governo de Assad começou a se preocupar com os refugiados da seca, disse Zakaria, porque no dia 11 de março –poucos dias antes do levante sírio começar em Dara’a- Assad visitou Hasakah, um evento muito raro. “Então postei no meu Facebook ‘que ele veja como as pessoas estão vivendo’”, lembra-se Zakaria. “Meus amigos disseram que eu deveria apagar aquilo rápido, porque era perigoso. Eu não quis. Eles não ligavam para como as pessoas viviam.”

Abu Khalil, 48, é um daqueles que não se limitaram a protestar. Ex-produtor de algodão que teve que se tornar contrabandista para sustentar seus 16 filhos depois que a seca arrasou suas terras, hoje é comandante do Exército Livre da Síria na região de Tel Abyad. Nosso encontro foi em uma base destruída do Exército Sírio. Depois de ser apresentado por nosso intermediador sírio, Abu Khalil, que parecia um pequeno boxeador, me apresentou a sua unidade de combate. A apresentação não foi por patente, e sim por parentesco, enquanto ele ia apontando cada um dos homens armados e dizendo: “Meu sobrinho, meu primo, meu irmão, meu primo, meu sobrinho, meu filho, meu primo…”

As unidades do Exército Livre da Síria muitas vezes são famílias. Em um país onde o governo, por décadas, não quis que ninguém confiasse em ninguém, não é de surpreender.

“Aceitamos a seca porque era de Alá”, disse Abu Khalil, “mas não podemos aceitar o fato do governo não fazer nada”. Antes de partirmos, ele me puxou para o lado e disse que tudo o que esses homens precisavam era de armas contra os tanques e os ataques aéreos e que, com isso, poderiam acabar com Assad. “Obama não pode deixar a máfia enviá-las para nós?”, perguntou. “Não se preocupe, não vamos usá-las contra Israel.”

Como parte do nosso filme, estávamos seguindo uma ativista politica, Farah Nasif, 27, de Deir-az-Zour, que se graduou pela Universidade de Damasco e cuja fazenda da família também foi arrasada pela seca. Nasif é um exemplo dos jovens seculares, conectados, recentemente urbanizados que encabeçaram os levantes pela democracia aqui e no Egito, Iêmen e Tunísia. Todos tinham duas coisas em comum: não temem mais seus governos nem seus pais e querem viver como cidadãos, com direitos iguais –não como sectários, com temores iguais. Se esta nova geração tivesse um lema, observou Aita, o economista sírio, seria o mesmo que os sírios usaram em sua guerra de 1925 pela independência da França: “A religião é de Deus; o país é de todos”.

Mas Nasif agora está dividida. Ela quer que Assad seja derrubado e que todos os prisioneiros políticos sejam liberados, mas ela sabe que mais guerra “só vai destruir o resto do país”. E ela sente que, mesmo quando Assad tiver caído, não haverá acordo sobre quem ou o que virá depois. Por isso, todas as opções a preocupam –mais guerra, um cessar-fogo, o presente e o futuro. Esta é a agonia da Síria hoje –e a razão pela qual quanto mais você se aproxima dela, mais inseguro fica de como resolvê-la.