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Mentindo ou fingindo?

Umberto Eco

23/08/2011 01h11

Alguns leitores podem ter notado um assunto abordado constantemente em algumas das minhas últimas colunas: a questão da mentira. Eu tenho pensado sobre este tópico desde que comecei a me preparar para fazer uma palestra no Milanesiana, um conhecido evento cultural que acontece todos os anos em Milão. O tema do evento deste ano, que ocorreu em junho, foi “verdades e mentiras”, e a minha palestra incluiu algumas observações sobre obras de ficção. Um romance seria um exemplo de mentira?

Vejamos o famoso romance de Alessandro Manzoni, “I Promessi Sposi” (“Os Noivos”). Quando Manzoni escreveu sobre como o personagem Don Abbondio encontrou dois vilões perto da cidade de Lecco, ele sabia muito bem que estava contando uma história que ele próprio inventara. Mas ele não estava mentindo: ele fingia que os acontecimentos da sua história tinham de fato acontecido, e pedia que nós participássemos da sua ficção, da mesma forma que nós poderíamos participar da fantasia de um garoto que pegasse uma vara e fingisse que esta fosse uma espada.

Naturalmente, as obras de ficção exigem que certos sinais sejam utilizados, desde a palavra “romance” na capa do livro até frases de abertura como “era uma vez”. Mas em certos casos o autor constrói uma camada adicional de artifícios. Vejamos as sentenças que abrem as “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift: “O senhor Lemuel Gulliver... três anos atrás, cansando-se da presença de curiosos que vinham procurá-lo na sua casa em Redriff, comprou um pedaço de terra em Newark... Antes de ir embora de Redriff, ele me encarregou de tomar conta dos seus documentos... Eu os examinei cuidadosamente em três ocasiões e é necessário que eu diga que... há um ar de verdade aparente em tudo isso; e, de fato, o autor era tão conhecido pelo seu amor à verdade que, entre os seus vizinhos de Redriff, tornou-se comum, quando alguém afirmava algo, dizer, quase que como se fosse um provérbio, que a afirmativa era tão verdadeira como se o senhor Gulliver a tivesse feito”. Na página de título da primeira edição das “Viagens de Gulliver”, o subtítulo pertence a Gulliver, e não a Swift, reforçando a ideia de que a história foi “escrita” pelo personagem do título.

Talvez os leitores não se deixem sempre enganar: desde “Uma História Verídica”, de Luciano de Samósata, nós vemos que alegações exageradas de veracidade acabam soando como sinais de ficção. Mas os romances apresentam com frequência uma mistura tão intrincada de fatos imaginários, acontecimentos reais e referências ao mundo real que os leitores correm o risco de perder a capacidade de avaliação.

O que acaba acontecendo é que alguns leitores levam os romances tão a sério quanto as histórias não fictícias, e eles passam a atribuir opiniões dos personagens ao autor. Como romancista, eu posso dizer baseado na experiência própria que assim que as vendas do escritor de um romance ultrapassam, digamos, 10 mil cópias, o seu público deixará de se restringir a leitores acostumados a ler narrativas de ficção e se expandirá para uma audiência maior, que lê os romances como se estes fossem histórias reais. Isso me faz lembrar dos tradicionais teatros de marionetes sicilianos, nos quais os espectadores às vezes mergulham tanto na história que passam a gritar palavrões contra o clássico personagem vilão Gano di Maganza.

No meu romance “O Pêndulo de Foucault”, o personagem Diotallevi zomba do seu amigo Belbo, que é obcecado por computadores, dizendo: “La Macchina esiste, certo, ma non e stata prodotta nella tua valle del silicone” - “A Máquina existe, é claro, mas ela não foi fabricada no seu Vale do Silício”. Um colega meu que leciona ciência observou sarcasticamente que a tradução correta de Silicon Valley em italiano é “Valle di Silicio” e não “valle del silicone”. Eu tentei explicar que tive a intenção de fazer uma piada. Eu observei que computadores são feitos com silício, e lhe disse que, se tivesse se dado ao trabalho de ler um pouco mais, ele teria descoberto que, quando Garamond diz a Belbo que inclua o computador na sua “História dos Metais”, por ser feito de silício, Belbo retruca: “Mas o silício não é um metal, é um metalóide”. E eu disse a ele que na passagem do “vale do silicone” não era eu que conversava com Diotallevi. Primeiro, o personagem Diotallevi não contaria necessariamente com um conhecimento perfeito nem de ciência nem de inglês; segundo, Diotallevi estava fazendo uma gozação com as más traduções do inglês, como quando por exemplo alguém traduz literalmente a expressão “hot dog”. O meu colega me respondeu com um sorriso cético, claramente convencido de que a minha explicação foi simplesmente um artifício inventado para disfarçar um erro.

Esse foi o caso de um leitor que, embora culto, não foi capaz de ler o romance como um todo, conectando as suas várias partes. Ele era evidentemente impermeável à ironia. E, finalmente, ele era incapaz de fazer uma distinção entre os pontos de vista dos personagens e o do autor. Para leitores desse tipo, o conceito de “fingimento” é totalmente desconhecido.