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O apresentador David Letterman é a voz do povo

O apresentador David Letterman  - Dimitrios Kambouris/Getty Images
O apresentador David Letterman Imagem: Dimitrios Kambouris/Getty Images

Umberto Eco

25/12/2011 00h01

De tempos em tempos eu leio nos jornais sobre o bom trabalho que David Letterman faz como âncora de um talk show nos Estados Unidos – tão bom, na verdade, que o "Late Show With David Letterman" agora pode ser visto em todo o mundo, inclusive na Itália.

Claramente, esses jornalistas que estão tão fascinados com Letterman nunca viram a personalidade noturna fantástica que era Johnny Carson (um apresentador que, creio eu, foi a inspiração para Maurizio Costanzo, que foi âncora do primeiro talk show da Itália). Carson foi anfitrião do "The Tonight Show" na NBC de 1962 a 1992: era um programa ótimo, repleto de ironia e sofisticação; comparado com Carson, Letterman parece mecânico e enfadonho em seu desempenho.

Da última vez que assisti seu programa, Letterman estava conversando com um convidado sobre a crise no Oriente Médio, e pediu ao sujeito para explicar porque – exceto pelas recentes insurreições da Primavera Árabe – os povos árabes simplesmente aceitam a vida controlada por ditadores ou xeiques que engordam com as reservas de petróleo locais enquanto oprimem seus povos econômica e politicamente.

Por que, perguntou Letterman, esses povos aceitam um destino como este? Afinal, em 1620, os peregrinos sentiram que seus direitos como puritanos estavam sendo oprimidos na Inglaterra, então equiparam o navio Mayflower e emigraram para os Estados Unidos, estabelecendo na Nova Inglaterra o primeiro núcleo de um país democrático.

O entrevistado parecia tão surpreso com a pergunta que teve dificuldades em oferecer uma das respostas mais óbvias: que havia relativamente poucos peregrinos (acho que eram 102), e que eles tinham à sua disposição um continente que estava praticamente vazio – enquanto há mais de um bilhão de muçulmanos no mundo hoje, e aqueles que estão sendo oprimidos podem, na melhor das hipóteses, emigrar apenas para países densamente povoados e cidades que não estão equipadas para aceitar pessoas em números tão grandes.

Eu teria acrescentado que os peregrinos eram um grupo relativamente sofisticado de pessoas que vieram da Inglaterra onde, por algum tempo, já existia a noção de direitos políticos dos cidadãos. Como pode ser realista pensar que o mesmo destino aguarda populações gigantes de árabes emigrantes hoje? Eles não têm ideia de para onde ir – e, bem longe de ter um Mayflower, eles podem no máximo se entregar às mãos de inescrupulosos traficantes humanos para cruzar o oceano. Além disso, eles não têm incompatibilidades por conta de suas crenças religiosas, nem têm a mínima ideia do que seja uma democracia ao estilo ocidental.

Ao ouvir a entrevista de Letterman, meu queixo caiu. Será que esta figura notória, cujas entrevistas têm potencial para ajudar as pessoas a ganharem alguma perspectiva de compreensão do mundo em que vivemos, de fato tinha ideias tão infantis sobre o que existe além das fronteiras dos Estados Unidos?

Mas Letterman estava expressando uma mentalidade comum nos EUA – não entre os intelectuais – mas entre a imensa massa de pessoas que vive no centro do país, onde os jornais locais reportam extensivamente sobre um bezerro que nasceu com duas cabeças, enquanto apresentam uma cobertura noticiosa apenas vaga sobre o resto do planeta. Lugares em que o The New York Times não chega, ou só pode ser encontrado em lugares de alta classe, pelo dobro do preço normal. Lugares em que, há alguns anos, as ligações de longa distância e internacionais só podiam ser feitas via telefonista; lugares como aquele em que, quando alguém pediu para a telefonista fazer uma ligação para Roma, foi questionado para qual Roma queria ligar – porque há uma na Georgia, uma no estado de Nova York, uma em Indiana e uma em Tennessee, sem mencionar algumas outras que eu não lembro mais. Ao descobrir que havia uma Roma na Itália também, a telefonista expressou imensa surpresa.

Há alguns anos numa conferência em Florença, uma pessoa que trabalhava para o Pentágono ou a Casa Branca (não me lembro qual), depois de ter desfrutado de um excelente peixe no jantar, e de descobrir que o peixe vinha do Mediterrâneo, perguntou se o Mediterrâneo era um lago salgado.

Às vezes me pergunto como os políticos norte-americanos médios (que ocasionalmente chegam tão longe em suas carreiras quanto George W. Bush) podem cometer tantos erros ao lidar com a Europa, África e Ásia. Talvez devamos simplesmente perguntar para Letterman.