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Até o gênios falam coisas sem sentido

O clássico problema do “assassino à porta” foi proposto por Santo Agostinho: um pobre coitado busca refúgio em sua casa, dizendo que um assassino perigoso está procurando por ele, você concorda e o esconde em sua casa - Shutterstock
O clássico problema do “assassino à porta” foi proposto por Santo Agostinho: um pobre coitado busca refúgio em sua casa, dizendo que um assassino perigoso está procurando por ele, você concorda e o esconde em sua casa Imagem: Shutterstock

Umberto Eco

29/01/2012 00h01

Há não muito tempo, seguindo os passos de Jonathan Swift e seu panfleto “A Arte da Mentira Política” de 1712, escrevi sobre os grandes mentirosos e falei sobre a antiga disputa entre os moderados e os rigoristas. Os primeiros admitem que, no fim das contas, é aceitável contar algumas mentiras (por exemplo, em nome da diplomacia e da cortesia), enquanto o último grupo sempre sustentou que nunca se deve mentir – nem mesmo para salvar a vida de alguém.

O clássico problema do “assassino à porta” foi proposto por Santo Agostinho, ele próprio um rigorista: um pobre coitado busca refúgio em sua casa, dizendo que um assassino perigoso está procurando por ele, você concorda e o esconde em sua casa. Depois de certo tempo, o assassino chega e pergunta pelo paradeiro do homem que está procurando. O que você faz? O bom senso nos diz que devemos mentir e dizer ao assassino que não sabemos do paradeiro do outro homem, ou que ele foi para outra direção. Mas os rigoristas dizem que, como nunca se deve mentir em nenhuma circunstância, você deve confessar ao assassino que a possível vítima está em sua casa. Naturalmente, as convenções mudaram com o tempo, e este problema parece bem menos rígido hoje em dia – uma pessoa pode simplesmente ocultar informações do assassino, sem mentir diretamente. Entretanto, em geral, os rigoristas nunca mudaram de opinião e continuam sendo totalmente contrários à mentira.

Isso nos leva a Immanuel Kant, um dos mais renomados exponentes da posição rigorista.

Kant, devo salientar, também foi uma das melhores mentes da história da filosofia. Mas às vezes, como Homero, ele se saía com declarações que ainda hoje nos deixam intrigados. Uma das mais conhecidas é aquela em que ele condena a música por se tratar de uma arte inferior, na “Crítica do Juízo” (1790). A música não é nada mais do que uma arte “agradável”, escreveu, porque ela “simplesmente brinca com as sensações” – diferente das artes “formativas”, como a pintura, escultura e arquitetura, que deixam uma “impressão mais duradoura”. Ele observou, também, que a música perturba aqueles que não a querem ouvir: ele comparou isso aos lenços perfumados que antigamente os homens carregavam nos bolsos e tiravam de tempos em tempos, obrigando as pessoas que estavam próximas a inalar a fragrância involuntariamente.

Entretanto, para a questão do assassino que pergunta se a vítima está em sua casa, Kant ofereceu um argumento extraordinário. Em “Sobre o Suposto Direito de Mentir por Motivos Altruístas” (1797), ele escreveu:

“Se ao contar uma mentira você evita o assassinato, você se torna legalmente responsável por todas as consequências; mas se você se atém rigorosamente à verdade, a justiça pública não pode por as mãos em você, quaisquer que sejam as consequências imprevistas. Depois de responder honestamente à pergunta do assassino dizendo que a vítima está em sua casa, pode ser que ela tenha fugido para não encontrar com o assassino, e portanto o assassinato pode não acontecer. Mas se você mentisse dizendo que ela não estava em casa, quando na verdade ela havia saído sem que você soubesse, e se o assassino a encontrasse enquanto ela fugia e a matasse, você poderia ser justamente acusado por provocar o assassinato. Se você contasse a verdade até onde soubesse, talvez o assassino pudesse ter sido preso pelos vizinhos enquanto procurava a casa, e portanto o assassinato talvez pudesse ser evitado. Portanto, quem quer que conte uma mentira, por mais bem intencionada que seja, deve responder pelas consequências, por mais imprevisíveis que sejam, e pagar a pena por elas até mesmo num tribunal civil.”

Espero que o bom Kant nunca tenha sido punido por ter mentido por “motivos altruístas”. Quanto à sua fé nesses vizinhos hipotéticos, se eles tivessem a mesma coragem que Kant, então a vítima estaria morta.

Por que estou contando novamente essa história, uma vez quer seria mais generoso (com o legado de Kant) esquecê-la? Sempre fui fascinado pela estupidez, mas quando expressões de estupidez aparecem nos escritos de homens verdadeiramente grandiosos, é como ser atingido por uma visão redentora: o fato de que até os gênios podem falar coisas sem sentido é uma fonte de grande consolo para o resto de nós, que duvidamos do nosso bom senso todos os dias.