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Monoteísmos e politeísmos

Umberto Eco

02/04/2015 00h01

Os ventos da guerra estão soprando e não se trata de uma pequena guerra local. O risco vem de um plano fundamentalista para islamizar o mundo inteiro, e o conflito já envolve vários continentes. Na verdade, foi relatado que a ameaça do Estado Islâmico já chegou a Roma, apesar de nenhuma bandeira do grupo estar tremulando no topo da Basílica de São Pedro.

Ao que me parece, historicamente, as grandes ameaças intercontinentais sempre vieram de religiões monoteístas. Apenas cristãos e muçulmanos se envolveram em conquistas militares em nome de seu deus.

Os gregos e romanos não queriam conquistar a Pérsia ou Cartago para impor seus deuses. Eles eram movidos principalmente por metas territoriais e econômicas, e assim que encontravam deuses diferentes dos deles, eles simplesmente incorporavam essas deidades em seu panteão. Seu povo chama você de Hermes? Tudo bem, nós chamaremos você de Mercúrio e você será um de nossos deuses. Os fenícios adoravam Astarte. Mas isso não era um problema para os egípcios, que a chamaram de Ísis, ou para os gregos, para os quais ela se tornou Afrodite. Ninguém invadiu as terras fenícias para eliminar o culto a Astarte.

Os primeiros cristãos foram martirizados não por reconhecerem o deus de Israel (afinal, esse era o negócio deles), mas porque negavam a legitimidade dos outros deuses.

Não se trata das sociedades politeístas nunca terem travado guerras, mas sim que em grande parte eram conflitos tribais que não tinham nada a ver com religião ou imposição de seus deuses aos outros. Os bárbaros do norte invadiram a Europa, e os mongóis fizeram o mesmo em terras islâmicas, mas em vez de imporem seus deuses, esses povos rapidamente se converteram às religiões locais.

Quando muito, é curioso que os bárbaros do norte, ao se tornarem cristãos e construírem um império cristão, depois montaram as cruzadas no Oriente Médio para impor seu deus aos muçulmanos, apesar de, no final do dia, ambas as culturas estarem basicamente adorando ao mesmo deus.

Eu também contaria o colonialismo como guerras de conquista travadas em nome do cristianismo. Fora os interesses econômicos que sempre as justificaram, as campanhas coloniais também incluíam o projeto virtuoso de cristianização das populações conquistadas, sejam os astecas, incas ou etíopes (independentemente do fato de que a maioria dos etíopes era cristã).

Uma exceção curiosa sempre foi o monoteísmo judeu, que por sua própria natureza não impõe a conversão religiosa a outros povos. As guerras mencionadas no Velho Testamento visavam garantir uma terra para o povo escolhido, não converter outras populações ao judaísmo. E os judeus nunca incorporaram outros cultos e crenças aos seus próprios.

Certamente não quero dizer que é mais civilizado acreditar nas deidades iorubás ou nos espíritos vodu do que na Santíssima Trindade ou no Deus único cujo profeta é Maomé. Tudo o que estou dizendo é que ninguém nunca tentou conquistar o mundo em nome dos deuses da crença afro-brasileira do Candomblé. Nem a deidade Barão Samedi do vodu exigia fieis além dos limites do Caribe.

O império chinês foi um grande conquistador territorial, mas seu povo não acreditava em um único ser que criou o mundo. E a China nunca tentou disseminar suas crenças para a Europa ou a América. Poderia ser argumentado que a China atualmente está conquistando territórios economicamente, por meio da compra de empresas e ações ocidentais. Mas se o povo fora do país acredita em Jesus, Alá ou Jeová, isso não faz a menor diferença para os interesses de negócios chineses.

Talvez as ideologias seculares do nazismo e do marxismo soviético sejam equivalentes às grandes religiões monoteístas. Mas os fascistas e soviéticos nunca tentaram hipnotizar seus seguidores com qualquer tipo de deidade ou ser sobrenatural. E, de qualquer modo, suas guerras de conquista logo chegaram ao fim.

Tradução: George El Khouri Andolfato