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Era uma noite escura e tempestuosa

Umberto Eco

30/04/2015 00h00

Há 50 anos, eu escrevi um livro no qual, entre outras coisas, analisei histórias em quadrinhos como "Peanuts" (Minduim), "Krazy Kat" e até mesmo "Superman". Um crítico do livro – intitulado "Apocalípticos e Integrados" na versão em português – reclamou que eu tinha usado técnicas literárias eruditas para analisar fenômenos culturais de baixo nível cultural. Essas técnicas eram mais adequadas para assuntos mais importantes, ele escreveu, com seu nariz bem empinado no ar.

O crítico expressou o temor de que tanto Platão quanto Elvis Presley em breve seriam considerados igualmente dignos de consideração. Então ele fez uma previsão: "Não sei se há algum risco disso se tornar verdade", ele escreveu. "Mas, caso se torne, em poucos anos a maioria dos intelectuais italianos estará produzindo filmes, canções e histórias em quadrinhos (...) enquanto jovens professores universitários estarão analisando os fenômenos da cultura de massa."

Que oráculo ele foi. Já na época em que ele escreveu aquilo, no início dos anos 60, Italo Calvino e Franco Fortini compunham canções, e Pier Paolo Pasolini e Alain Robbe-Grillet faziam filmes. Nos anos 70, certas universidades na Itália davam cursos sobre comunicação de massa.

Mas talvez até mesmo aquele crítico nunca teria imaginado que, em março deste ano, as pessoas celebrariam o 50º aniversário do surgimento da "Linus", a gloriosa revista italiana voltada principalmente para histórias em quadrinhos, na universidade de Milão.

Cofundada e editada por muitos anos por Giovanni Gandini, a "Linus" começou a ser vendida na histórica livraria Milano Libri. A revista publicava quadrinhos americanos, incluindo "Peanuts", "Pogo", "Ferdinando" e "Dick Tracy", ao lado de artigos que lidavam com o espírito de 1968 e outros assuntos. Posteriormente, a "Linus" passou a publicar quadrinhos de artistas italianos como Guido Crepax e Hugo Pratt.

Expandindo ainda mais o legado da "Linus", a Rizzoli-Lizard publicou recentemente "Linus: Storia di una Rivoluzione Nata per Gioco", de Paolo Interdonato, que reconstrói a história da revista, assim como o ambiente social milanês contemporâneo, traçando ao mesmo tempo a influência da "Linus" sobre pelo menos uma geração de fãs de quadrinhos.

Mas vamos dar um passo para trás por um momento. Como foi que Gandini e amigos passaram a amar os quadrinhos americanos no início dos anos 60, apesar de ninguém na Itália publicá-los na época? Na banca Algani na Piazza della Scala de Milão, eu me recordo de ver quadrinhos americanos, mas geralmente eram revistas como "Superman" e "Pato Donald" da Disney. É claro, Gandini podia ter ido aos Estados Unidos e descoberto os quadrinhos em sua fonte. Ou talvez os encontrado nas mãos dos primeiros libertadores americanos –exatamente como aconteceu comigo.

Mas, mesmo antes do fim da guerra, uma revistinha surgiu em Roma em 1945, chamada "Robinson". Ela publicava "Dick Tracy", "Ferdinando", "Terry e os Piratas" de Milton Caniff e "Agente Secreto X-9", entre outros. A revista não durou muito e seu assunto era novo demais para interessar a crianças ou adultos (apesar destes não lerem quadrinhos naquela época).

Mesmo assim, é totalmente possível que tenha sido nas páginas da "Robinson" que Gandini, então com 16 anos, tenha descoberto aqueles quadrinhos proibidos pela primeira vez, assim como eu quando tinha 13. Mas nunca saberemos. Gandini já morreu e atualmente é muito difícil encontrar cópias da "Robinson" (agora muito caras). Aquele crítico esnobe não previu que algum dia não apenas estudaríamos a linguagem e a história cultural dos quadrinhos, mas também a arqueologia e as coleções de quadrinhos.

Fazia sentido tratar Charlie Brown a sério meio século atrás? Eu certamente achava que sim. Eu me encontrei com Charles M. Schulz, o criador de Charlie Brown, apenas uma vez –em um bar de Paris pouco antes de sua morte em 2000. Ele me agradeceu pelo prefácio que escrevi para seu primeiro livro de "Peanuts" publicado em italiano, que o "New York Review of Books" republicou 20 anos depois.

O que Schulz me perguntou quase imediatamente? Ele queria saber o que eu pensava sobre Jesus Cristo. Não recordo qual foi minha resposta – provavelmente porque não foi nada particularmente digno de nota – mas naquele momento eu me convenci de que Schulz não apenas desenhava personagens adoráveis de quadrinhos. Ele também era um poeta com preocupações filosóficas.