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O arquivo soterrado em mina de sal que pretende salvar conhecimento humano do apocalipse

As placas são empilhadas em caixas de cerâmica que guardam nosso conhecimento em pedra para futuras gerações descobrirem - Memory of Mankind
As placas são empilhadas em caixas de cerâmica que guardam nosso conhecimento em pedra para futuras gerações descobrirem Imagem: Memory of Mankind

31/12/2016 16h23

Gravadas com estranhos pictogramas, linhas e marcas em forma de cunha, elas ficaram enterradas no deserto do Iraque por milênios. Deixadas pelos sumérios há cerca de 5 mil anos, as tábuas de argila dão uma ideia do que acredita-se ser o registro escrito mais antigo de um povo que desapareceu há muito tempo.

Embora tenha demorado décadas para que arqueólogos conseguissem decifrar o misterioso idioma preservado nas placas, elas deram uma amostra de como era a vida na aurora da civilização.

Tábuas semelhantes e pedras esculpidas também foram desenterradas em locais habitados por outras importantes civilizações que há tempos desapareceram - desde os hieróglifos dos antigos egípcios até às inscrições dos maias da Mesoamérica.

As histórias e detalhes que elas continham resistiram ao teste do tempo, sobrevivendo durante milênios para serem desenterradas e decifradas por historiadores modernos. No entanto, há temores de que futuros arqueólogos não tenham acesso ao mesmo tipo de registro imutável quando eles buscarem por vestígios da nossa civilização.

Atualmente vivemos em um mundo digital no qual a informação é armazenada em listas de pequenos registros com uns e zeros eletrônicos que podem ser editados ou até apagados por simples toques acidentais em um teclado.

"Infelizmente nós vivemos em uma época que vai deixar poucos registros escritos", explicou Martin Kunze, idealizador do projeto Memória da Humanidade, ou MOM (Memory of Mankind, no original em inglês).

O MOM é uma colaboração entre acadêmicos, universidades, jornais e bibliotecas cujo objetivo é criar uma versão moderna das tábuas deixadas pelos sumérios.

O plano deles é reunir o conhecimento acumulado de nossa era e guardá-lo debaixo da terra nas cavernas de uma das minas de sal mais antigas do mundo, nas montanhas da região de Salzkammergut, na Áustria.

"O principal objetivo do que estamos fazendo é armazenar a informação de uma maneira que seja legível no futuro. É um 'back-up' do nosso conhecimento, da nossa história", disse Kunze.

Criar uma "cápsula do tempo" pode parecer arcaico em uma era na qual a maior parte do nosso conhecimento flutua na nuvem da internet. No entanto, um deslize para uma era escura tecnológica não é algo que pode ser ignorado.

Perigo virtual

O advento da internet fez com que seres humanos tivessem, ao alcance de seus dedos, mais acesso à informação do que em qualquer outro período da história. Entretanto, os enormes repositórios de conhecimento que construímos são perigosamente vulneráveis.

Cada vez mais as informações vêm sendo armazenadas digitalmente ou remotamente em servidores ou discos rígidos.

A situação fica mais séria quando levamos em consideração que alguns artigos científicos hoje são publicados apenas online. Catálogos completos de imagens de telejornais, programas de TV e filmes são armazenados digitalmente. Documentos oficiais e legislações governamentais ficam em bibliotecas digitais.

Todavia, uma conferência de cientistas especializados no tempo do espaço sideral, junto com funcionários da agência espacial americana Nasa e do governo dos Estados Unidos, alertou para a natureza frágil da informação digital.

Partículas carregadas descartadas pelo Sol durante uma poderosa tempestade solar poderiam desencadear surtos eletromagnéticos com o potencial de tornar nossos dispositivos eletrônicos inúteis, além de apagar todos os dados armazenados em cartões de memória.

Tempestades assim são uma ameaça real, e elas acontecem com relativa frequência. Um relatório publicado pelo governo britânico no ano passado destacou que fortes tempestades solares têm acontecido a cada 100 anos.

A última grande tempestade do tipo a atingir a Terra, conhecida como o Evento Carrington, foi em 1859 - acredita-se que esta foi a maior tempestade em 500 anos. Ela acabou com sistemas de telégrafo no mundo todo e produziu faíscas em torres elétricas.

Na era da internet, um evento como esse poderia ser catastrófico.

Mas há outras ameaças também - hackers ou funcionários descuidados que poderiam adulterar esses registros digitais ou apagá-los de uma só vez.

Também há a possibilidade de nós perdermos o acesso a essas informações. A tecnologia tem mudado de maneira tão rápida que formatos de mídia têm se tornado obsoletos cada vez mais rápido. Minidiscs, VHS e o antigo disquete tornaram-se antiquados dentro de décadas.

Daí surge o desejo de guardar uma cópia impressa dos nossos documentos mais importantes. Infelizmente, até as maneiras mais tradicionais de armazenar dados dificilmente são capazes de manter a informação segura por mais de alguns séculos.

Enquanto temos alguns manuscritos que sobreviveram centenas de anos - e no caso de papiros, milhares de anos -, a menos que eles sejam guardados em condições adequadas, a maioria se desintegra e vira pó depois de algumas centenas de anos. Jornais podem se decompor em até seis semanas se forem molhados.

"É bem provável que no longo prazo os únicos traços das nossas atividades hoje sejam o aquecimento global, o lixo nuclear e latinhas de Red Bull", disse Kunze. "A quantidade de dados está sendo inflada rapidamente, então o real desafio é selecionar o que queremos guardar para nossos netos e para aqueles que vierem depois deles."

Esse é o motivo pelo qual Kunze e seus colegas buscaram inspiração nas tábuas de pedra deixadas pelos sumérios.

Pequenas fichas, espalhadas pelo mundo, guiarão futuras gerações até o arquivo subterrâneo que guarda nosso conhecimento - Memory of Mankind - Memory of Mankind
Imagem: Memory of Mankind

Arquivo permanente

A equipe do MOM tem como meta criar um arquivo permanente do nosso modo de vida ao gravar, em placas quadradas de cerâmica com 20 centímetros de diâmetro, documentos oficiais, detalhes da nossa cultura, artigos científicos, biografias, livros populares, novas histórias e até mesmo imagens.

Isso é possível por meio de um processo descrito por Kunze como "microfilme de cerâmica", o qual ele diz ser o sistema de armazenamento de dados com maior duração do mundo.

As placas planas de cerâmica são cobertas por uma camada escura e um laser é usado para fazer inscrições nelas.

Cada uma dessas placas tem espaço para 5 milhões de caracteres - algo semelhante a um livro de 400 páginas.

Elas são resistentes a ácidos e alcalinos, e podem suportar temperaturas de 1300°C. Um segundo tipo de placa também pode ter fotos coloridas e diagramas impressos com 50 mil caracteres. Após a gravação de dados, elas são seladas com um esmalte transparente.

As placas são então empilhadas dentro de caixas de cerâmica e guardadas dentro das escuras cavernas da mina de sal em Hallstatt, na Áustria.

O lugar, que poderia ser descrito como o local de repouso da cápsula do tempo definitiva, é impressionante. Com a luz certa, as paredes ainda reluzem com os restos de sal, que ajuda a extrair a umidade e secar o ar.

O sal tem uma propriedade semelhante à plasticina que ajuda a selar fraturas e rachaduras, tornando a tumba à prova d'água. Enterrados sob milhões de toneladas de pedra, os registros poderão sobreviver por milênios e até mesmo por idades do gelo, segundo Kunze.

Valor inestimado

Em algum futuro distante depois que a nossa civilização tiver desaparecido, esses registros poderiam ter valor inestimado para quem os encontrasse.

Eles poderiam dar a culturas menos avançadas que a nossa o acesso a conhecimentos esquecidos, ou ser uma rica fonte de informação histórica para civilizações mais avançadas, garantindo que nossas conquistas, e nossos erros, possam ser estudados.

Mas esses registros também podem ter valor no curto prazo.

"Nós estamos tentando criar algo que não será apenas uma coleção de informações para um futuro distante, mas algo que também será um presente para nossos netos", afirmou Kunze.

"O MOM pode servir como um 'back-up' do conhecimento no caso de eventos como guerras, pandemias ou um meteorito que nos faça retroceder séculos dentro de duas ou três gerações. Uma sociedade pode perder habilidades e conhecimento rapidamente - no século 6, a Europa perdeu, em sua maioria, a capacidade de ler e escrever dentro de três gerações."

Conteúdo das placas

Os arquivos do MOM já têm uma amostra eclética do que é a nossa sociedade. Entre as informações gravadas nas placas de cerâmica estão livros resumindo a história de países ao redor do mundo.

Cidades e vilarejos também pediram para ter suas histórias locais incluídas. Mil dos livros mais importantes do mundo - escolhidos com a ajuda de um algoritmo da Universidade de Viena - também serão impressos nas tábuas.

Museus estão incluindo imagens de objetos preciosos de suas coleções que são acompanhadas de descrições do que aprendemos com esses itens.

Também há placas com fotos de fósseis - dinossauros, peixes pré-históricos e ammonites (gênero de moluscos cefalópodes) - acompanhadas de descrições do que sabemos sobre eles.

Muito do material incluído nas placas está em alemão, mas há também placas em inglês, francês e outros idiomas.

Um punhado de celebridades também foi imortalizado nas criptas de sal. O ator e cantor David Hasselhoff, mais conhecido pelo seu trabalho no seriado de televisão Baywatch, conta com um registro longo, assim como a cantora alemã Nena, que ficou famosa com o hit dos anos 80 99 Red Balloons.

Junto com eles, há também uma placa detalhando a história de Edward Snowden e o vazamento de informações secretas da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), dos EUA.

A Universidade de Viena também tem colocado dissertações de doutorado premiadas e artigos científicos nas placas.

Nesse arquivo também estão placas que descrevem modificação genética e patentes de bioengenharia, explicando as descobertas feitas por cientistas modernos e como eles chegaram a essas conclusões.

Junto das pesquisas científicas, objetos do nosso dia a dia como máquinas de lavar, telefones celulares e aparelhos de televisão também estão sendo representados como um registro de como é a vida nos dias de hoje.

As placas também servem como um alerta e apontam locais onde resíduos nucleares foram despejados para que futuras gerações possam evitá-los ou limpá-los caso tenham desenvolvido a tecnologia necessária.

Jornais foram convidados a enviar editoriais diários para que um repositório de opiniões, assim como fatos, seja preservado.

De muitas maneiras, o problema real é o que não incluir. "Nós provavelmente temos 0.1% da literatura antiga, mas no mundo moderno publicar algo é tão fácil como postar algo na internet ou no Twitter", explicou Kunze.

"Publicações sobre ciência, voos espaciais e medicina - coisas nas quais realmente investimos - acabam perdidas em meio à massa de dados que produzimos. O Grande Colisor de Hádrons produz algo como 30 Petabytes de dados por ano, mas isso é igual a apenas 0.003% do tráfico anual da internet. Um fragmento aleatório de 0,1% dos nossos dados do presente daria uma visão bem distorcida do nosso tempo."

Para resolver este problema, Kunze e seus colegas estão organizando uma conferência em novembro do ano que vem para reunir cientistas, historiadores, arqueólogos, linguistas e filósofos para criar um processo de como selecionar o conteúdo para o projeto.

A equipe também espera deixar imortalizado vestígios do cotidiano e incentiva membros do público a criar suas próprias placas.

"Estamos gravando receitas de cozinha, histórias de amor e acontecimentos pessoais", disse Kunze. "Em uma das placas uma menina incluiu três fotografias de sua primeira comunhão e escreveu um pequeno texto sobre isso. Elas dão ideias da vida diária que serão bastante valiosas."

Tuítes preservados

O MOM não é o único projeto que encara a difícil tarefa de preservar o conhecimento acumulado da humanidade. Bibliotecários ao redor do mundo também estão tentando lidar com o complicado problema de como salvar a informação da idade moderna.

A Universidade da Califórnia Los Angeles, por exemplo, está arquivando tuítes relacionados a grandes eventos e preservando-os em seus arquivos.

"Estamos selecionando tuítes do Cairo no dia da revolução de 25 de janeiro, por exemplo", explicou Todd Grappone, bibliotecário-associado da universidade.

"Nós estamos traduzindo-os para diversos idiomas e salvando-os em formatos que devem continuar sendo acessíveis no futuro. Estamos fazendo isso apenas digitalmente no momento, já que temos cerca de 1 mil vídeos feitos com telefones celulares apenas desse evento, mas o valor disso é enorme."

Outro projeto, chamado de Projeto Humano de Documentação (Human Document Project, em inglês), tem como objetivo gravar informação em pastilhas de tungstênio e nitreto de silício.

Inicialmente, eles estavam gravando essas pastilhas com dezenas de pequenos códigos de QR - um tipo de código de barra bidimensional - que podem ser lidos usando smartphones. Agora, eles dizem que os discos finais levarão informações escritas de uma maneira que podem ser lidas utilizando um microscópio.

Leon Abelmann, pesquisador da Universidade Twente em Enschede, na Holanda, é um dos idealizadores do projeto. Segundo ele, a meta é produzir algo que conseguirá sobreviver por um milhão de anos. Agora eles estão começando a colaborar com o MOM.

"Nós ficaríamos muito felizes se encontrássemos informações deixadas por uma forma de inteligência que foi extinta há milhões de anos", disse ele.

"Então acreditamos que seres inteligentes do futuro também ficarão felizes. O simples fato de que precisamos ter uma visão afastada de nós mesmos pode fazer, espero eu, com que percebamos que as diferenças entre nós são triviais."

Localização

Enterrar essas placas debaixo de uma montanha, porém, pode fazer com que seja improvável que gerações futuras consigam encontrá-las. Por isso, o MOM gravou pequenas fichas com um mapa localizando onde os arquivos estão.

Essas fichas estão sendo distribuídas para todos os participantes do projeto para que, assim, eles possam enterrá-las em locais estratégicos ou passá-las para as próximas gerações.

Para garantir que a pessoa que encontre as placas consiga, de fato, ler o que está gravado nelas, a equipe do MOM tem criado sua própria versão da Pedra de Roseta, que foi fundamental para a compreensão moderna dos hieróglifos egípcios, com milhares de imagens etiquetadas com seus nomes e significados.

Todo este esforço demonstra o tamanho da pretensão do que o grupo deseja realizar. Os indivíduos que encontrarem essa mina de ouro de conhecimento podem ser bem diferentes de nós.

Em alguns milhares de anos a civilização pode ter avançado para além de nossas previsões ou pode ter retrocedido para uma era das trevas. Talvez nem sejam humanos os descobridores de nossas memórias. "Poderia ser uma outra forma de vida inteligente", disse Kunze.

Nós nunca saberemos o que os arqueólogos do futuro pensarão da nossa civilização quando eles tirarem o pó dessas placas daqui milhares de anos, mas podemos ter a esperança de que, assim como os sumérios, nós não seremos esquecidos.