Pária e irrelevante na ONU, Bolsonaro tenta excitar fã e cutucar jornalista
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Bolsonaro discursou, na manhã desta terça (22), na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Desde a criação da ONU, há 75 anos, é a primeira vez que isso acontece de forma virtual.
Ao contrário do que circulam em grupos de seus fãs alheios à realidade, abrir a assembleia anual não é sinal de prestígio deste atual presidente, mas tradição inaugurada desde a fundação da ONU, uma homenagem ao Brasil, em reconhecimento a uma época em que a diplomacia brasileira fazia diferença no mundo.
Na verdade, Bolsonaro conta, de um lado, com o desprezo de uma boa parte dos líderes das democracias ocidentais por seu comportamento biocida, suas políticas piromaníacas e seu terraplanismo sanitário. E, do outro, com o desprezo de quem o vê como um vassalo ou como fornecedor de matéria-prima a preço baixo.
O discurso de um chefe de Estado na Assembleia Geral é, na grande maioria das vezes, voltado mais a seu público interno do que à comunidade das nações. Mesmo quando ele vomita nacionalismo e teorias conspiratórias contra nossa soberania, como fez Bolsonaro nesta terça, está falando com sua plateia, não com o mundo.
Com isso, o presidente excitou aquela camada de 12% a 16% da população que pula no abismo se ele mandar. Ou seja, usou mais uma vez a política externa para fortalecer o bolsonarismo-raiz, base de sua militância e seu escudo de proteção.
É para ela que ele estava falando quando colocou a "cristofobia" como um dos grandes problemas mundiais a serem resolvidos. Ou quando reforçou a sua já conhecida terceirização de responsabilidade por conta das mortes causadas pela covid-19 e pelos desastres ambientais em série.
Ou quando jogou a culpa pelos incêndios na Amazônia no "índio" e no "caboclo". Repete, assim, seu discurso na Assembleia Geral do ano passado, quando evitou responsabilizar pecuaristas, madeireiros, grileiros e garimpeiros pelas queimadas e o desmatamento. E citou populações indígenas e pequenos produtores rurais como responsáveis por iniciar incêndios.
Ao mesmo tempo, as mentiras do discurso de Bolsonaro indignam, no Brasil, mais jornalistas e a intelectualidade. Vamos escrever textos analisando o significado de cada palavra presidencial - e é isso mesmo o que ele deseja para se manter no noticiário em um assunto que não faz cócega junto à população.
Ele ainda nos cutucou ao dizer que a imprensa brasileira "politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população". Disse que sob o lema "fique em casa" e "a economia a gente vê depois", jornalistas quase trouxeram o caos social ao país.
Contudo, a maior parte dos brasileiros segue preocupada com o fim do auxílio emergencial e se o preço do cimento e do arroz vai baixar.
A elite política e econômica do Ocidente talvez faça cara de nojinho, realize alguns protestos, mas nada do que disse hoje é novidade. A maior parte sabe que tanto imagens de satélites com fogo e desmatamento quanto uma montanha de quase 140 mil mortos por covid não mentem.
E, aqui e ali, já vão tirando silenciosamente seu dinheiro do Brasil, enquanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, inventam uma nova desculpa diariamente para inglês ver. Não é apenas uma questão dos fundos de investimento preservarem a imagem e evitarem vinculação aos seus recursos em um local em franca destruição. É também fugir do risco representado pelo próprio presidente.
Quem fica agradecido, contudo, é o presidente norte-americano que, antecedido por um fiel escudeiro, teve mais tempo para falar outras aberrações em seu discurso eleitoreiro.
Bolsonaro encerrou seu discurso com uma referência sabuja a Donald Trump, que — obviamente, não devolveu o favor, ignorando totalmente Bolsonaro em seu discurso.
Já não bastasse ter usado nosso aço, nosso etanol e nossa independência diplomática a serviço da reeleição de Trump, Bolsonaro cede também nossa dignidade.