Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que doar vacinas ao Brasil se Bolsonaro ainda as questiona em público?
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O Brasil ficou de fora da lista de doação de 500 milhões de doses da Pfizer que serão distribuídas pelos Estados Unidos a 92 países pobres a partir de agosto. Após isso, mensagens em grupos bolsonaristas em aplicativos e redes sociais acusaram o presidente Joe Biden de "comunista" e de sabotar o governo Bolsonaro.
Ignoram que o recorte foram países de renda baixa e média-baixa que não conseguem adquirir a vacina por contra própria e que o Brasil já entrou num pacote de doação de 6 milhões de doses anunciado pelo Tio Sam à América Latina e ao Caribe.
Mas não deixa de ser pitoresco ler bolsonaristas reclamando de sabotagem de vacinação considerando que o governo que apoiam incondicionalmente sabotou a imunização o quanto pode no ano passado.
E ainda sabota. Falando em uma igreja evangélica, em Anápolis (GO), nesta quinta (9), Bolsonaro mentiu sobre as vacinas contra a covid-19, afirmando que elas não têm comprovação científica. E comparou imunizantes à cloroquina, dizendo que ambos estão em "estado experimental".
"[Cloroquina e ivermectina] não têm comprovação científica. E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está experimental. Mentira: nem as vacinas estão em fase experimental (já tendo sido aprovadas), nem a cloroquina está (tendo sido rejeitada pela comunidade científica para a covid).
Como brasileiro, reconheço que seria ótimo receber parte das 500 milhões de doses da Pfizer, uma vez que a falta de imunizantes por aqui está matando milhares de brasileiros todos os dias. Mas seria um tanto quanto ridículo tirar doses do braço de cidadãos de países pobres após o Brasil ter sistematicamente negado a compra da vacina no ano passado.
Sempre bom lembrar: não somos um país pobre, somos um país desigual. Não é que o país não tinha dinheiro para comprar, tinha. Ele que não quis.
E falando em ridículo, veio a público, nesta quinta (10), um documento em posse da CPI da Covid mostrando que, diante do silêncio do governo diante das propostas da Pfizer, a empresa procurou a Embaixada do Brasil em Washington DC para um "e aí, mermão?" em agosto do ano passado. E, claro, não deu em nada.
Bolsonaro, amparado pelas avaliações do "ministro paralelo" da Saúde, Osmar Terra, e por seu Gabinete das Sombras, preferiu apostar no incentivo à rápida contaminação da população em busca da fantasia da imunidade de rebanho. Ela não veio, mas a fatura dessa estratégia tresloucada chegou: 480 mil mortos - e subindo.
Agora, senadores e depoentes bolsonaristas na CPI da Covid tentam emplacar a bisonha versão de que não foi possível fechar contrato com a farmacêutica porque a vacina ainda não estava pronta, as condições do contrato eram leoninas e batiam de frente com a lei brasileira.
Bisonha porque o pagamento só sairia se a vacina fosse aprovada, o Brasil assinou o contrato em março deste ano com as mesmas condições de antes e uma lei permitindo a aquisição foi aprovada num piscar de olhos pelo Congresso em março e poderia ter sido no ano passado.
Dada a situação gritante de contaminação por aqui, poderíamos ter obtido mais vantagens junto aos Estados Unidos, como a Índia e o México. Mas por que ajudar o vizinho a garantir a segurança da casa dele se ele brinca de roleta-russa com a cabeça dos filhos? Isso, depois do vizinho ter dito que você chegou ao poder de forma roubada.
Sei que não é fácil responder a pergunta do título deste texto. Mas a resposta está na dissociação entre o que é Bolsonaro e a maioria da população - coisa que teremos que fazer repetidas vezes depois que essa tempestade passar. O Brasil é maior que Bolsonaro e milhões de pessoas não têm culpa do cemitério de covid-19 que ele transformou nosso território.
Então, ignorem-no e mandem vacinas, ou melhor, vendam sobras de vacinas que possam ser entregues imediatamente. Até porque, enquanto o país for esse caldeirão de variantes criado por ele, somos uma ameaça biológica para o mundo.