Na cracolândia, voluntários entregam 700 quentinhas e acusam poder público
Sexta-feira da paixão, um grupo de voluntários prepara cerca de 700 marmitas de arroz, feijão e frango para distribuir na cracolândia. Três mulheres mexem a comida em panelas grandes, enquanto quatro rapazes tomam conta da porta do galpão, que fica em frente à praça Julio Prestes, no centro de São Paulo. Na rua, um dos usuários que transitam pra lá e pra cá se aproxima e grita histericamente.
"Pelo amor de Deus, me ajuda! Eu quero sair das drogas! Pelo amor de Deus! Fala com o governador, com o presidente, me tira daqui! Eu não tenho onde dormir nem pra onde ir, eu quero sair das drogas, me ajuda!" Deivide dos Santos se ajoelha aos pés dos voluntários e chora.
Sujo, esfarrapado, alucinado
Sinto um misto de raiva e impaciência. Quero ir embora. Mas percebo que isso não vai resolver o meu problema. Primitivamente identificado com o desespero daquele homem sujo, esfarrapado, alucinado, entendo o quão sofisticado teria de ser o trabalho do poder público para atender aquela população. Os voluntários afirmam que, em vez disso, o que se vê é truculência, despreparo e ignorância.
"Isso aqui (alimentação) é só o alicerce para a redução de danos. Precisa de muito, mas muito mais", diz Carmen Lopes, 49, do Coletivo Tem Sentimento, um dos oito que se reuniram para a distribuição das marmitas. Cerca de dez pessoas trabalham no preparo da comida, no acondicionamento na caixinha de isopor e na distribuição. À porta, uma delas avisa aos primeiros a chegar que logo tudo estará pronto.
De mal a pior
Disposto a acompanhar o trabalho dos voluntários, procurei dias antes o pessoal dos coletivos e perguntei se poderia estar lá durante a ação. Muito receptivos, eles responderam que sim, que começaria às 16hs e que eu teria acesso a todas as etapas.
De acordo com o educador e artista plástico Raphael Escobar, 32, um dos integrantes do mutirão, aquela área "nunca esteve tão desassistida". "Desde novembro, a prefeitura vem desmantelando os Atende [equipamento de acolhimento diário emergencial], e anteontem fechou o da Helvetia [rua paralela]. Eles alegam que abriram um novo, no Glicério [a cerca de 5km dali], mais bem estruturado. Acontece que transferir o equipamento para longe do 'fluxo" [lugar de maior concentração de usuários, onde se aglomeram cerca de mil pessoas] só piora a situação. Quem conhece de perto essa população sabe que o acolhimento deve estar próximo, sempre de portas abertas, e vir até ela, e não o contrário."
Nildes Neri, 53, presidente da ONG Ação Retorno, diz que a transferência do equipamento da Prefeitura para o Glicério acontece no pior momento. "Eles disponibilizam transporte para levar as pessoas daqui pra lá, mas vai entupido de gente. A orientação das autoridades da saúde não é evitar aglomeração na quarentena?"
Estilhaço de bomba
Enquanto a distribuição de marmitas não começa, saio para dar uma volta na praça. A cerca de 50 metros, há uma fila de pessoas que aguardam para serem atendidas por quatro assistentes sociais. Prancheta na mão, uma delas anota nomes para acomodá-los em um pernoite. Eu me aproximo e, quando alguém da fila me vê com o bloco de anotações, vários chegam perto para se queixar: "O senhor é da Saúde?"
A cozinheira Margareth de Paula, 47, conta que veio do Rio para tirar o marido da prisão, e o encontrou na cracolândia. "Ele diz que só é usuário de maconha", afirma, com uma expressão incrédula.
Ela relata que polícia esteve ali na véspera, e tratou todo mundo como "lixo". Mostra um corte profundo no peito do pé esquerdo, e diz que foi causado por um estilhaço de bomba. A voz sai estrangulada, por causa do choro preso. O marido se aproxima e diz: "Para de falar que eu roubei a carga do caminhão! Eu estava lá, mas não participei!"
Fila do pernoite
Margareth se revolta com as assistentes sociais, grita na direção delas, diz que desde que chegou está dormindo na rua e que precisa esconder suas coisas para não roubarem.
Por sua vez, as assistentes sociais afirmam que há um limite de vagas no albergue da região, e que estão só fazendo o seu trabalho. Quantas vagas? Elas não respondem: pedem para falar com a assessoria de imprensa. Mas então, sem querer, uma delas deixa escapar que são 16.
Dezesseis??
Um caminhão pipa com água potável permanece estacionado ali perto. Escobar explica que não resolve. "Existe um muro invisível aqui", diz ele, apontando para um espaço entre o caminhão e o fluxo. "Não basta deixar o caminhão aí, e esperar que todos venham espontaneamente beber água. Acolhimento é mais que isso."
A 100 metros, à frente da Sala São Paulo, está um ônibus da Polícia Militar.
A GCM (Guarda Civil Metropolitana) também circula por ali.
Três vezes por dia, picapes da corporação tocam suas sirenes para anunciar aos usuários o deslocamento para outro ponto da praça, enquanto se opera a limpeza da área do fluxo.
Tudo ao mesmo tempo
A multidão segue à frente das picapes e, na sequência, um grupo de guardas a pé monitora a operação. Embora caminhe obedientemente, a horda de andarilhos não tem um aspecto homogêneo. Há gente de todas as idades, cores e procedências. Homens e mulheres heterossexuais, gays, lésbicas, travestis e pessoas híbridas.
Em comum, a fisionomia esgotada, o físico decadente e o andar errático. Com os cabelos quase sempre grandes e desgrenhados, descoloridos, ou presos com piranhas, elásticos cítricos, lenços coloridos e turbantes, muitos seguem solitários, ensimesmados, outros enrolados em cobertores, ou nervosamente abraçados com pessoas de qualquer gênero. Alguns beijam indistintamente homens e mulheres.
Risadas e xingamentos
Ouvem-se risadas e xingamentos, um empurrão daqui, uma declaração de amor de lá. Por menor que seja o deslocamento, cada um leva o que é seu com muito zelo. Carregam mochilas, bolsas grandes e puxam malas com rodinhas. Uma mulher trans jovem, com uma bandana vermelha na cabeça, usando uma sandália alta de verniz preta e um minivestido estampado laranja, verde e bege, leva um travesseiro em uma das mãos e um aparelho de CD na outra. Com o andar ritmado, ouve a todo volume "Like a Virgin".
Mais ou menos uma hora depois, as sirenes das picapes anunciam que é hora de voltar. O movimento se repete.
Um pouco mais de arroz
No galpão, os voluntários terminam de fechar as marmitas de isopor. Nildes Neri diz que eles não estão acostumados a fazer comida para tanta gente. É necessário preparar um pouco mais de arroz. Trata-se de uma experiência nova, que eles pretendem repetir todos os dias. Mas precisam de ajuda. "O custo é muito alto", comenta, preocupada.
Por volta das 21hs, as marmitas estão dispostas em caixas para serem levadas para a calçada com os pacotes de água. É preciso ter tudo pronto de uma vez, para não despertar ansiedade nem deixar alguém sem comida. A fila já está a postos. À frente acontece um bate boca entre dois homens do fluxo, sem maiores consequências. Começa a distribuição.
O bebê grita de fome
Depois de pegar sua marmita, a travesti Gabrielle Lopes, 23 anos, que afirma viver da prostituição, finca a faca de plástico na tampa de isopor e abraça a amiga Ana Carolina Souza, 27, que está grávida de três meses e comenta que "o bebê está gritando de fome". "Ele fica pulando na barriga, faminto", diz ela, rindo com poucos dentes.
Entre uma garfada e outra de arroz com feijão, o mecânico de moto Adriano Araújo, 32 anos, conta que frequenta a cracolândia há dois anos e quatro meses. "Dessa última vez, é mais ou menos isso", completa.
Cabelos ralos e brancos, rosto marcado por rugas grandes e profundas, o auxiliar administrativo João Batista de Oliveira, um senhorzinho de 49 anos, diz que o osso de seu ombro saiu do lugar. Ele mostra. "A Prefeitura diz que pessoas com problemas como o meu tem atendimento preferencial."
Digamos que, nesse caso, o termo "atendimento preferencial" é retórico.
Outro lado:
Nota da Prefeitura:
"A Prefeitura de São Paulo diz que distribui na região 900 refeições, sendo 700 do novo equipamento, o SIAT II - Glicério, e 200 refeições no Núcleo de Convivência da Luz.
"Não é verdade que o local do 'fluxo' está desguarnecido. No Núcleo de Convivência da Luz, os usuários que permanecem continuam a contar com banheiros. Há também banheiro montado na Rua General Osório e pias para higienização foram instaladas próxima à Praça Isabel. Um caminhão da SABESP está fornecendo água para todos.
"A Prefeitura também conta com a atuação de Organizações Não-Governamentais (ONG) para fornecer quentinhas na região.
"As equipes socioassistenciais continuam realizando abordagens na região da Nova Luz e as pessoas que aceitam acolhimento são levadas em veículos até o SIAT II- Glicério.
"Na quarta-feira, dia 08/04, as equipes de assistência social e saúde da PMSP conduziram, de forma voluntária e pacífica, 178 pessoas transportadas em ônibus e vans, com número de passageiro abaixo da capacidade total e com máscaras, para evitar exposição a contágio de coronavírus para o SIAT II - Glicério.
Sobre os inúmeros relatos de violência na ação policial da véspera (quinta-feira, 9), a assessoria de imprensa da Prefeitura orienta a reportagem a procurar a secretaria da Segurança Publica do Estado, e vice-versa.
A nota da Prefeitura: "A Guarda Civil Metropolitana apoia os serviços diários de zeladoria na região da Nova Luz e também realiza apoio aos agentes da saúde e assistência social que atuam no local. Sobre a polícia é preciso que UOL procure a SSP estadual", diz, em nota, a Prefeitura.
A da SSP: "A Polícia Militar esclarece que não houve uso de munição química ou disparos de elastômero por agentes da instituição. Por volta das 16h20 desta quinta-feira (9), a PM prestou apoio a uma ação da Guarda Civil na Rua Helvetia, para que agentes municipais pudessem higienizar as ruas da região."
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