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Paulo Sampaio

Aos 65 anos, sobrevivente do HIV agora integra "grupo de risco" dos idosos

Ricardo Mendonça, em foto de 2019: aos 65 anos, ele volta a ser do "grupo de risco"  - Claudia Perroni
Ricardo Mendonça, em foto de 2019: aos 65 anos, ele volta a ser do "grupo de risco" Imagem: Claudia Perroni

Colunista do UOL

16/04/2020 04h04

O administrador de empresas Ricardo Freire de Mendonça recebeu sua sentença de morte em um dia gelado do inverno de 1989. O resultado do teste para HIV — o vírus causador da aids — veio positivo (reagente). Na época, isso equivalia a dizer que, inapelavelmente, em um período não muito longo de tempo, ele morreria. Pouco se sabia sobre a doença, e o que havia de recurso para combatê-la mostrou-se ineficiente na maioria das vezes.

A morte viria depois de um sofrimento prolongado, ele definharia até a completa falência física, sem direito à invocação nem misericórdia. Isolado pelo medo generalizado do contágio e também por suscitar a fantasia da depravação, o "aidético" viveria sua solitária ruína debaixo do mais perverso escrutínio social. Preconceito não define.

"A gente não podia contar o resultado de um teste positivo para absolutamente ninguém. Nem para nós mesmos. Não era bom ser visto na companhia de alguém que estivesse com aids, especialmente em estado avançado, porque havia muita especulação a respeito da transmissão da doença. Dava-se como certo o contágio pelo esperma e pelo sangue, mas falava-se também em suor, saliva e até lágrimas", lembra Ricardo.

Depressão nem ansiedade

Condenado à morte, ele deixou de fazer planos para o futuro. Passou a viver a varejo. Com um misto de resignação e cinismo, diz agora que não sofreu depressão nem crise de ansiedade. "Amigos que sequer contraíram o vírus, como você (o repórter), eram muito mais apavorados. Passavam meses morrendo. Eu só preferiria, caso ficasse doente, que fosse rápido (o tempo até a morte), para evitar o sofrimento de outras pessoas."

Acontece que, contra todas as expectativas, Ricardo Freire de Mendonça não morreu. Até 1996, quando um "coquetel" de medicamentos deu à aids o status de doença crônica, ele nunca teve uma infecção oportunista — como são chamadas as que se aproveitam da baixa imunidade causada pelo vírus, para atacar o organismo. Mesmo sendo assintomático, seguiu a orientação do especialista e passou a tomar os medicamentos como medida de prevenção.

Grupo dos idosos

E então, de volta para o futuro, aparece o novo coronavírus. Eis que, depois de 30 anos assistindo a todo tipo de discriminação em relação a pacientes de aids, a pandemia de covid-19 empurra Ricardo mais uma vez para o famigerado "grupo de risco". A expressão é repudiada especialmente por militantes da causa LGBT, por reforçar o estigma e o preconceito contra a comunidade gay. A correção política recomenda usar "comportamento de risco".

Em relação ao novo coronavírus, falam-se em "fatores de risco". As pessoas mais vulneráveis são os idosos e com doenças pré-existentes. Aos 65 anos, Ricardo possui as duas condições.

Ele não dá importância para a forma como catalogam o "grupo" ao qual pertence. Com a ironia típica dos sobreviventes, diz que desta vez tem tudo para se salvar. Por acaso, vive em relativo isolamento, em uma casa construída em sociedade com o último companheiro. Fica em um terreno de dois mil metros quadrados, em São Lourenço da Serra, cidade a cerca de 50 km de São Paulo.

Desprezo pela morte

Amigo do Ricardo há 33 anos, eu diria que o desapego dele por tudo não é apenas consequência da condenação precoce, mas um traço marcante de sua personalidade. Em determinada medida, acredito até que ele deve muito de sua sobrevivência a um certo desprezo pelas convenções — incluindo a própria morte. Ele concorda.

Sem ser rico nem se dedicar a uma atividade profissional clara, ele nunca pareceu fazer esforço para ter o que queria. Comprava carros de coleção, importados, vendia, aparecia com outros, levava os namorados para passear, dava presentes para eles, viajava de repente para fora do país, o dinheiro vinha, ia, ele ria.

Na maré baixa, nunca se lamentava por ter torrado tudo sem dó. Logo, ele surgiria ao volante de um Cadillac 1950, ou uma Mercedes esporte, com um divertido ar de magnata.

"Me guardar para quando?"

Em todos esses anos de convivência, eu nunca o vi se privar de algum prazer. Pegador inveterado, carregava sempre alguém pra casa. Adorava festas, comia tudo que tinha vontade e invariavelmente estava com um copo de uísque na mão: "Me guardar para quando?", ele pergunta agora.

Com relação aos inumeráveis parceiros de sexo casual, ele diz que os preservava. "Nunca transei sem camisinha." Apesar de gostar de "variar", ele se apaixonava de perder o rumo. Conta pelo menos cinco relacionamentos duradouros. "Sempre que percebia que a coisa ia ficar séria, eu conversava com a pessoa sobre o HIV." Os receosos se afastavam.

Pergunto se ele chegou a ir a enterros de pessoas que morreram em decorrência da aids na época. Sim, ele cita dois. O que sentiu? "Tristeza de saudade, mas não necessariamente medo ou identificação." Um dos amigos tinha muito receio de fazer o teste do HIV e, quando adoeceu, já era tarde. "Ele morreu em poucos dias, de uma pneumonia."

Porra-louca, mas romântico

Ricardo se submeteu ao teste do HIV sem que houvesse sintoma de doença alguma, apenas por sugestão de um amigo que é dermatologista. O médico fez o pedido e, depois, deu a notícia. Dentro do possível, o tranquilizou. Hoje, ele acredita que foi ruim e bom. "Eu já era porra-louca, foi um bom motivo para continuar sendo. O Collor levou minhas economias naquele confisco de poupanças, eu peguei o que sobrou e viajei para a Europa, só com passagem de ida. Corri para aproveitar o tempo que me restava, que eu não sabia quanto era."

Por mais que fosse desregrado, inconsequente, Ricardo não vê termo de comparação com o comportamento da geração que hoje tem 20, 30 anos e dispõe de várias alternativas para evitar o contágio do HIV, como a PrEP (profilaxia pré-exposição ao vírus) e a PEP (profilaxia pós exposição, também chamada de 'pílula do dia seguinte do HIV') — sem falar no coquetel de medicamentos.

"A minha porra-louquice era romântica. A gente até podia usar droga, no meu caso muito raramente, mas não dependia disso para ter prazer. Atualmente, eu sinto uma certa selvageria nas baladas. Parece que não existe um interesse real por ninguém e, ao mesmo tempo, os meninos beijam dez numa noite. A satisfação é forjada, fake."

Nove às seis

Depois de mais de dez anos se divertindo, com parcos períodos de investimento profissional, Ricardo chegou ao ano 2000 relativamente conformado. Pensou: "Bom, já que eu não vou morrer mesmo, preciso arrumar um emprego." Um primo que fora banqueiro o chamou para integrar uma equipe de administradores de renda. Ele passou oito anos trabalhando de 9h às 18h.

Até 2008, quando teve a primeira doença grave associada ao HIV, uma leucemia, ele jamais havia conversado sobre sua orientação sexual com a mãe e os três irmãos. Imaginava que eles soubessem, ou, no mínimo, que tivessem fortes desconfianças. O pai, por quem Ricardo professava um inocultável desprezo, não contava.

Uma dor antiga

Internado durante oito meses, três deles na UTI, involuntariamente Ricardo revelou para a família o que no fundo todo mundo já sabia, só que agora com o plus do HIV. Segundo diz, isso modificou completamente sua relação com eles. "Todos se afastaram, e eu não consigo atribuir essa atitude a outro motivo que não o preconceito. Só pode ser", diz.

O sujeito que deu as costas até para a morte está melancólico. E não tem a ver com HIV nem com novo coronavírus. A dor é mais antiga. Ricardo suspeita que remonte as suas origens, o que leva a crer que ele tem sobrevivido desde sempre.