Criador do movimento "Somos 70%" foi do capitalismo selvagem ao MST
O ex-banqueiro Eduardo Moreira é um carioca atlético, bronzeado, falante, encantado com as próprias ideias. Aos 44 anos, ele conta que viveu intensamente o capitalismo selvagem, ganhou muito dinheiro no mercado financeiro e um dia se deu conta da aviltante desigualdade social que assola o Brasil.
Largou tudo para estudar a fundo o assunto.
Chegou a consultar uma "bibliografia da desigualdade", mas não achou suficiente. Queria algo raiz: "Estabeleci cinco grupos e fui vivenciar a realidade deles — um assentamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), uma favela metropolitana; uma aldeia indígena; um presídio e uma localidade no sertão do nordeste." Por enquanto, ele esteve no MST, na aldeia e no sertão.
O garoto criado na zona sul do Rio, em um ambiente "extremamente conservador", descobriu que não tinha aprendido nada na escola (particular): "Sempre tirei excelentes notas, mas nenhum professor saberia dar a aula de economia que eu tive nessa vivência; não está em nenhum livro. Foi a grande lição da minha vida. No assentamento, eu morava com eles, comia com eles, dormia com eles. A comida é maravilhosa, de uma qualidade inacreditável. Sabe por quê? Porque tudo nasce da terra!", empolga-se.
O ex-banqueiro é casado com a ex-paquita Juliana Baroni, 42, autodefinida "mais progressista que ele".
Cálculo arredondado
A última de Moreira foi a criação da #Somos70%, embrião de um movimento suprapartidário que reúne críticos de todas as tendências políticas ao governo de Jair Bolsonaro. Os 70% são uma interpretação livre do resultado de uma pesquisa do DataFolha que revelou que a rejeição ao governo havia crescido. Feito nos dias 25 e 26 de maio, o estudo mostrou que 43% dos brasileiros consideravam o governo ruim ou péssimo, 33% ótimo ou bom, 22%, regular e 2% não sabiam. Moreira excluiu os 33%, e arredondou o resto.""
O cálculo foi feito ao vivo, em um programa de que ele participa na "TV Democracia". "No primeiro dia, a hashtag teve 3 milhões de visitas, só no twitter", comemora.
O berço da efeméride
"Foi aqui que nasceu o 70%", diz Moreira, em um banco na churrasqueira de seu sítio, em Jacareí (82 km de SP), onde passa a quarentena com a mulher, a ex-mulher, o marido dela e os filhos de todos.
Ele explica que o movimento agrega uma gama grande de insatisfeitos. Desde os "apenas decepcionados", até os que querem o impeachment do presidente. Eduardo Moreira fala por si: "O Eduardo Moreira é a favor do impeachment, mas não pode responder pelo grupo todo. Só 50% são. Então, não dá para adotar uma bandeira que não é da maioria, só porque o Eduardo a defende."
Uma vez palestrante
Pouco depois do começo da entrevista, Moreira explica que precisa fazer uma live, e sobe para a casa que construiu na parte mais alta do sítio. Abre o computador e, em minutos, está repetindo exatamente o que falou há pouco para a coluna, só que agora para 50 mil pessoas (segundo ele).
Descobre-se então que a entrevista foi, na verdade, uma palestra. Aos que o acompanham, ele fala de novo sobre como deixou o banco para conhecer a realidade social do Brasil etc etc.
Ao definir o projeto de vivência com os cinco grupos escolhidos, ele prefere usar o termo "imersão" . Não gosta da palavra "visita". "Acho ofensiva, parece que estou falando de um zoológico e que fui ver a girafa, o elefante, o tigre."
Figura interessante
A primeira imersão foi no MST. Chegou lá indicado pelo professor Jessé Souza, estudioso da desigualdade social.
Jessé: "Eu o procurei quando o assisti em um programa, falando sobre o saque do mercado financeiro. Era uma figura politicamente interessante, vinda de um núcleo antipopular, disposto a uma vivência que nenhum político profissional toparia". O professor apresentou o ex-banqueiro à principal figura do MST, João Pedro Stédile, da direção nacional do movimento.
Stédile acolheu a indicação de Jessé: "O Eduardo havia sido avaliado pelo meu amigo Jessé, que me disse que eu podia confiar nele. Nós o recebemos em uma reunião, houve uma empatia, ele passou no teste de cara. Me pareceu um jovem de fato bem-intencionado."
Malvado, terrorista
Quando Jessé disse a Eduardo Moreira que ia apresentá-lo a Stédile, ele lembra de ter pensado: "Cara! Esse sujeito é malvado, terrorista." Mas então descobriu que seu receio era infundado: "Ele foi de uma simpatia, de um acolhimento. Inacreditável! O cara sorri, te ouve, é engraçado. Você consegue imaginar o Stédile engraçado??""
Moreira decidiu começar a imersão pelo MST porque era o grupo que ele "mais rejeitava". "Vivi em um meio onde as pessoas valem pela quantidade de dinheiro que fazem, pelo apartamento onde moram, pelo carro que dirigem. Aprendi a odiar o PT desde pequeno, o MST, os socialistas, tudo o que fosse de esquerda, de vermelho. Odiava o Lula."
A abordagem franca do passado condenável remete ao discurso da ex-prostituta regenerada.
Hemorroida do bem
Em Moreira, a mudança radical de valores foi um processo muito doloroso, que se deu a partir de uma malsucedida cirurgia de hemorroida. Ele conta:
"Sofri seis tromboses, cheguei a perder 12 quilos em uma semana, quase morri. Naqueles dias, o caseiro do sítio me ligou dizendo que teve de levar a filha para o hospital porque ela estava com dores abdominais insuportáveis. Fiquei com aquilo na cabeça. No dia seguinte, liguei para saber da menina, ele me disse que ainda não haviam arrumado um quarto para ela. Arrumaram depois de três dias."
Quem está pagando?
Naquele momento, o lado humanitário de Moreira esboçou uma saída do armário. "Eu estava em um quarto com TV de plasma, era atendido por três médicos que se revezavam, um monte de enfermeiras, botão para chamar quem eu quisesse, cardápio para escolher as refeições...Me perguntei: 'Por que eu tenho direito a tudo isso? Quem está bancando?'"
Um levantamento resumido o levou a concluir que a conta era paga pelo próprio caseiro. "Quem banca minha internação é o plano de saúde. Quem banca o plano é o banco. O banco coloca isso como um dos nossos custos, que é bancado pelo cliente. E quem é um desses clientes? Meu caseiro, que coloca o dinheiro no banco."
Saída do armário
Foi então que se deu o pontapé definitivo para fora do armário. "Esse cara [caseiro] pagando esse luxo todo [cirurgia de hemorroida], e eu, como grupo social, não permito que ele tenha acesso ao mínimo de dignidade e proteção para a pessoa que ele mais ama!!"
Depois de expurgar um "Caramba!", Moreira começou a escrever no celular um livro em que desconstruiria tudo o que havia vivido até então. Ex-sócio-tesoureiro do banco Pactual, ele saiu em 2009 para fundar com três colegas a empresa Brasil Plural e criar a Genial Investimentos. Abandonou as duas oito anos depois.
O nome do livro: "O que os donos do poder não querem que você saiba".
Na empresa, a turma da selvageria financeira deu a ele um ultimato: "Ou o livro ou o banco".
Crise de choro
Ele chegou em casa atordoado. "Eu tinha me separado da primeira mulher, a gente dividiu o patrimônio, eu investi a minha parte toda no banco. Se fosse embora, sairia em uma situação muito desfavorável, pelos valores patrimoniais."
Foi então que, assistindo a um filme com o filho, sofreu uma catarse. No filme, o mocinho é pego no flagra e fica claro que ele é o verdadeiro vilão. Para tentar se livrar do outro, oferece R$ 1 milhão em troca do silêncio. "Nessa hora, meu filho de 7 anos, Francisco, diz: 'Papai, isso não está certo, né? Dar dinheiro para alguém mentir?'"
Um novo abalo levou Moreira a uma crise de choro. Decidiu que não voltaria ao banco. "No dia seguinte avisei que estava fora."
Nascer de novo
De acordo com o ex-capitalista selvagem, a imersão nos cinco grupos citados tinha como objetivo "viver a vida dos caras e sofrer junto". "Eu queria sentir a dor deles."
Muitos diriam que seria preciso nascer de novo.
Mas tudo ao redor de Moreira conspirava a favor da inaudita experiência. Além Jessé e Stédile, a mulher o louvava pelo espírito "muito questionador, sempre inquieto".
Bolsonaristas irrecuperáveis, os pais e irmãos dele deram sua contribuição, reagindo com estupor à singularidade do projeto. Os críticos e detratores, por sua vez, só fizeram reafirmar a eficácia da provocação. "Quando comecei a ter opiniões que afrontavam o mercado financeiro, isso causou um desconforto gigantesco", lembra.
Pai adorável
Durante a entrevista, Moreira acena de passagem para os filhos, responde aos chamados deles com sorrisos, mostra que é um pai adorável. E também um marido atencioso; colhe flores para a mulher, entrega o buquê e a beija na boca: "Meu presente por hoje". Ela: "Hoje?" Ele: "O Dia dos Namorados." Ela ri da cena.
Os dois estão juntos há seis anos, idade da filha deles, Maria Eduarda. Segundo Juliana, a convivência intensa durante a quarentena não desgastou o relacionamento, como muitos casais reclamam. Ao contrário, os aproximou. "Aqui a gente desenvolveu mais o espírito de generosidade. As crianças já entenderam que estamos isolados, e que não dá para comprar material escolar quando acaba. Então, eles compartilham, dividem. Não existia isso antes", diz.
Cartão zerado
Para Juliana, o isolamento social vai modificar radicalmente a relação das pessoas com o consumo: "Desde que cheguei aqui, eu não usei o cartão de crédito. E não está me fazendo nenhuma falta", garante.
Ela reconhece que o ambiente em que a família vive o confinamento favorece a harmonia. Instalado em um terreno de cinco alqueires, o sítio de Moreira agrega duas casas grandes, de cerca de 300 metros quadrados cada, tem piscina, estábulo e é banhado por um trecho não-poluído do rio Paraíba do Sul. Para vencer os oito quilômetros de estrada de terra que levam à propriedade, o ex-banqueiro usa uma picape 4x4 F150 Raptor.
"Eu sei que a gente é privilegiado. Viver o confinamento com a família toda, em um apartamento pequeno, deve ser bem difícil", diz Juliana, que em São Paulo mora com o marido e a filha em uma casa de frente para o parque Ibirapuera.
Tucanos e raposas
Nas tardes da quarentena, o recém-militante pela distribuição de riqueza costuma se isolar em uma casa que mandou erguer no topo de uma árvore, para ler sobre desigualdade. Diz ter uma boa relação com tucanos e raposas. "Todos os dias eles vêm me visitar."
O material estudado na casa da árvore ressurge na forma de lives, que alternam basicamente quatro tópicos:
* Números: "As cinco pessoas mais ricas do Brasil acumulam o correspondente a renda da metade do País. Pensa: 100 milhões de pessoas! Dados da Forbes!";
* Parábolas de autoria própria. "Pensem em um parquinho de areia, em que as crianças brincam e deixam buracos. Vamos imaginar que isso seja a extrema pobreza. Para cobri-los, ou você gera nova riqueza, ou diminui os montinhos mais altos (riqueza dos 5%)."
* Citações de clássicos, em linguagem palatável: "Rousseau, em seu 'Discurso da Origem da Desigualdade entre os Homens', já dizia: 'Tudo começou quando um maluco olhou para o chão, traçou um quadrado em volta dele e disse: 'É meu'."
* Citações a ele mesmo: "Ao me posicionar contra o governo Bolsonaro, perdi 80% das palestras."
Este último tópico ele emite com inegável orgulho, como prova de que seu projeto está dando certo.
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