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Paulo Sampaio

Na pasta LGBT de Crivella, filho trans de Witzel diz que mal vê o prefeito

Erick Witzel: "Quem sou eu para me comunicar com o prefeito!" - Ricardo Borges/UOL
Erick Witzel: "Quem sou eu para me comunicar com o prefeito!" Imagem: Ricardo Borges/UOL

Colunista do UOL

06/09/2020 04h00

Rafael Gomes, assessor de imprensa da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio (CEDS), é muito receptivo quando peço uma entrevista com o cozinheiro Erick Witzel, 26, nomeado há um ano para ocupar um cargo na pasta.

Impõe apenas uma condição: "Se for sobre o pai dele, sobre esse assunto que tá rolando agora, do impeachment, da votação na Justiça pelo afastamento, sobre isso a gente não pode falar. Até porque aqui é município, e as questões lá são de estado."

Além de cozinheiro, Erick é universitário, está cursando direito, mas tornou-se conhecido como o "filho homem trans do governador do Rio, Wilson Witzel".

Denúncia e afastamento

No dia 26, quarta-feira, a Procuradoria Geral da República (PGR) denunciou Witzel pai e a primeira-dama Helena Witzel por corrupção passiva e ativa, e lavagem de dinheiro.

O ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aceitou a denúncia e afastou o governador do cargo por 180 dias. Witzel é acusado de estruturar uma organização criminosa que movimentou mais de R$ 550 mil em propinas pagas por empresários da saúde ao escritório de advocacia de Helena.

Guardiões de Crivella

Por coincidência, no dia da entrevista, 1º de setembro, terça-feira, o município também estava nas manchetes do noticiário por causa de um escândalo na saúde.

Na véspera, o programa RJ2, da TV Globo, mostrou que um grupo de whats app intitulado "Guardiões do Crivella", composto por funcionários da própria prefeitura, fazia plantões nas portas dos hospitais para tentar evitar denúncias da população na área da saúde. Os participantes impediam o acesso da imprensa aos pacientes. A reportagem mostrou que o próprio Crivella participava do grupo.

Sem conhecimento

No Palácio da Cidade, em Botafogo, onde se realizou a entrevista, pergunto se Erick conversou com o prefeito depois do acontecido. Ele diz que não teve conhecimento de muita coisa. "Somos a segunda maior prefeitura da América Latina. Como é que eu vou saber o que acontece com todas as pessoas que trabalham aqui?"

Na coordenadoria, Erick desempenha a função de "assessor de empregabilidade e articulação institucional". Sua tarefa é "sensibilizar" (convencer) o setor público (secretarias municipais) e o privado (empresas) a cooperarem com a inclusão da comunidade LGBTQI+, especialmente os trans, no mercado de trabalho.

Como será que se dá a comunicação da pasta (e particularmente do entrevistado) com Crivella, que é evangélico? "Quem sou eu para me comunicar com o prefeito da cidade! Mal vejo ele. Sou um mero assessor aqui, um funcionário público. O que eu posso dizer é que o trabalho acontece."

Chama a ambulância

Responsável por políticas públicas da prefeitura na área LGBTQI+, a CEDS dá especial atenção ao acesso dessa população à saúde. O coordenador do setor, Nélio Georgini, 44, explica como funciona:

"Chega uma pessoa, se queixa de uma dor aqui e ali, e o que a gente faz? É gay? Liga para a (secretaria da) saúde, diz que tem uma pessoa com essa narrativa assim, assado, e pergunta onde ela pode ser atendida. Aí, a gente diz pra pessoa: 'Vai nesse lugar aqui que vão te atender'. Outro exemplo: eu tenho uma pessoa LGBT com a perna quebrada. Ligo para a saúde e digo 'chama a ambulância'."

Atendimento prioritário?

Diante do relato de Georgini, eu me vejo na premência de perguntar se existe a possibilidade de um atendimento médico prioritário, em uma cidade em que a saúde do estado e a do município agonizam. E se a comunidade LGBTQI+ — da qual eu faço parte — consegue furar a fila. "Que privilégio!", comento, sem nenhuma agressividade.

Erick Witzel reage mal.

"Amigo, amplia a sua visão de mundo", recomenda.

Ele me ajuda: "Se você não sabe, eu vou explicar. Digamos que você é um homem trans e seja estuprado. O que você acha que acontece? Como você acha que eu vou ser tratado? Como vai ser o meu encaminhamento para a ginecologia? Você acha que é igual ao tratamento que dariam a um homem cis?"

A partir de então, o entrevistado mostra desinteresse pela conversa.

Entrevista coletiva

Na pequena sala da coordenadoria, a entrevista é acompanhada por seis pessoas que se manifestam à vontade. Sentados lado a lado, Erick e a travesti Dandara Vital, "articuladora de movimentos sociais", olham para a tela de um computador; em outra mesa, Rafael, o assessor de imprensa, tecla no celular; Thiago Martins, "assistente de comunicação", sorri em silêncio; separado por uma janela de vidro, o "assessor de ação social", Cris Lacerda, dá palpites em voz alta; em uma sala contígua estão Nelio Georgini e a chefe de gabinete, Lilia Sendin, que é advogada e à dada altura se junta ao grupo para fornecer embasamento jurídico ao discurso LGBTQI+ dos colegas.

Muito entusiasmado, Georgini irrompe a todo instante na sala e fala com empolgação do trabalho da coordenadoria. Ajuda também a conduzir a entrevista. Ensina que é importante "tocar o coração do Erick".

"Eu estou vendo as suas perguntas, com certeza o Erick vai se sentir desconfortável. E por quê? Porque a gente está na era dos millennials... Isso é até para você refletir. Eu entendo a sua visão [do repórter]. É igualzinha à do meu marido. Ele é executivo de banco. Acorda gay, acha que ninguém percebe que ele é gay e, na verdade, não faz a mínima diferença para ele ser gay."

Linguista aplicado

A argúcia de Georgini tem origem definida: "É que eu vim da área da educação, sou linguista aplicado, então cato muito as palavras das pessoas. Sua visão [a do repórter] colide com a do Erick porque você se fez homem e profissional na sociedade em que você nasceu e se criou, e sobreviveu a isso, então essa sociedade te aglutinou tal qual..."

Eu me pergunto por que a minha visão não pode "colidir com a do Erick".

Gênio arredio

Como se estivesse falando de uma horda de gênios arredios, Georgini avisa que é melhor não provocar os millennials. "Eu tive que 'desierarquizar' a coordenadoria, porque senão eles iriam embora!! Você pensa que eles ficam? Não ficam! E quem faria o trabalho deles? Não existe mais a noção de chefia como a de antigamente, esquece isso! O Erick e a geração dele não estão interessados em saber o quanto você sofreu para ele estar aqui! Os millennials querem chegar no cartório e casar. E nenhum deles encara isso como privilégio."

Perplexo, recapitulo mentalmente a pergunta que eu fiz no início: "Diante da falência da saúde no estado e no município do Rio de Janeiro, dá para exigir prioridade no atendimento de alguma pessoa — LGBTQI+ ou não?"

Corte epistemológico

Enquanto Nelio Georgini responde às perguntas feitas a Erick Witzel, o entrevistado presta atenção na tela do computador. Buscando atraí-lo, executo uma espécie de corte epistemológico. Comento, do nada, que ele não se parece fisicamente com o pai. Erick: "Que comentário é esse!"

Em outra tentativa, procuro mostrar que o assunto "identidade de gênero" me desperta interesse. Digo que já fiz dezenas de matérias a respeito do tema, e cito uma recente sobre o Ambulatório Trans da Prefeitura de Niteroi.

Nelio Georgini volta à carga: "Peraí!! A coisa lá é bem diferente! A galera aqui é raiz! A Dandara era da Augusto Severo.."

Augusto Severo?

O assessor de imprensa responde: "Ela era puta."

Georgini: "O menino que estava aqui [Cris Lacerda] foi resgatado pelo movimento social nas drogas. Veio da rua direto pra aqui! Se eu, morador da zona sul, dono de um carro com ar condicionado, não conseguir descer os degraus para entender a vida dessas pessoas, como vou ter sensibilidade para ajudá-las!?"

Discurso da sapatão

De repente, um insuspeitado bullying gayfóbico começa a se formar na coordenadoria dos direitos LGBTQI+. Para dar a medida do quanto eu sou "equivocado", Dandara cita bolsonaristas como o deputado Hélio Negão, a youtuber lésbica Karol Eller [que levou uma surra homofóbica em um quiosque da Barra da Tijuca] e o maquiador gay Agustin Fernandez:

Apontando para mim ameaçadoramente, Georgini diz: "Você tem o mesmo discurso da sapatão [Karol Eller]... E vai sair daqui sendo chamado de transfóbico, homofóbico, LGBTfóbico!"

Percebo olhares sádicos ao redor.

Sorriso e copo d'água

Dandara sorri ligeiramente, olhando por cima da tela do computador, e diz: "O Paulo ficou magoado."

Erick coloca um copo d'água a minha frente, na mesa, e aproveita o vento a favor:

"Imagina que tem uma pessoa negra, falando da vivência dela, e você diz: 'Eu sei..' Você não sabe! Não tem a menor ideia do que é ser negro! Nem trans! Então, é importante você ouvir sem reagir!"

Ninguém cogita um "eu sei" retórico.

Epílogo

"Essa experiência que você está tendo aqui, com pessoas do movimento social, é única, com certeza a primeira da sua vida", acha Georgini. "Especialmente com o Erick e a Dandara...Gente, o Erick bateu boca com o próprio pai, todo mundo sabe!! Eles [millennials] têm uma verdade própria, que nenhum governo tira!"

É melhor não falar mais em "privilégio"....