Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Bolsonaro é a farsa que precedeu a tragédia. E "Insta-testamento" da reação
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Não é a primeira vez que o corpo mórbido de Jair Bolsonaro serve à baixa exploração política. Ora ele se vende como o destemido, o corajoso e o atleta. Ora como o moribundo, vítima de um suposto complô das esquerdas. As duas personagens agradam aos fanáticos: o primeiro é o que destrói homens maus. O segundo é o que se transforma em alvo dos maus — provando, então, que estes existem —, oferecendo-se em sacrifício.
Uma coisa e outra apelam a categorias que nada têm a ver com a política e operam na esfera do fanatismo e da adesão irracional. Os que se deixam capturar viram joguetes de um cálculo. Em 2018, Carlos Bolsonaro fez uma selfie no hospital, com o pai seminu ao fundo. Não se tratava apenas, em termos bíblicos — já que se fingem tão pios —, de ver a nudez do pai, mas de expô-la nas redes sociais.
Não estou aqui a menosprezar a gravidade do quadro de saúde do presidente. Até onde sei, a coisa é séria, e não há a certeza de que ele possa ter uma boa resposta, como não havia em 2018. Operou-se, então, uma escancarada e bem-sucedida manipulação política de uma dificuldade real. E se busca reproduzir agora a fórmula.
Há quase três anos, era perfeitamente possível presumir que Bolsonaro, se eleito, conduziria o país à desordem, dados passado e pensamento do então candidato. De todo modo, ele não era dono de uma obra. Agora é. Aquele Bolsonaro não tinha nas costas a gestão de uma pandemia. No seu caso, a farsa precedeu a tragédia.
Se ele colherá de novo frutos da espetacularização do sofrimento e do exercício de teorias conspiratórias toscas, bem, saberemos no curso dos dias. E, por certo, tudo vai depender da evolução do quadro. Independentemente das apostas e desejos que as pessoas possam ter, uma coisa me parece certa: ao país, interessa que sobreviva para poder responder por suas escolhas. Em política, o vitimismo sempre esconde interesses subalternos. Quem adota esse lugar está disposto a apresentar aos outros uma fatura pesada, que considera a justa paga por sua suposta cota de sacrifícios.
O primeiro efeito que buscaram colher aqueles que expuseram, mais uma vez, a foto de um suposto moribundo é a intimidação da CPI. Pretende-se que a comissão pare de fustigar o governo com os fatos e que a apuração dos crimes dê lugar a votos de pronto restabelecimento.
Foi assim com a campanha eleitoral de 2018. Enquanto Bolsonaro concedia entrevistas no leito de hospital, engrolando reacionarismos entre gemidos e sussurros, seus adversários o poupavam da crítica, e suas, por assim dizer, "ideias" não eram debatidas. Nas redes, as milícias digitais punham para circular as teorias mais estrambóticas sobre o suposto e inexistente complô para matá-lo.
No texto que circulou nas redes sociais nesta quarta, ilustrado pela foto de um "herói fora de combate", há ecos, longínquos e rebaixados, da carta-testamento de Getúlio Vargas, aquele que, segundo o próprio suicida, teria sido escravo do povo para que o povo não fosse mais escravo de ninguém. O golpista fascistoide de 1937 enfrentava, com efeito, uma poderosa e virulenta articulação reacionária em 1954, além de ter como companhias a estupidez e a insanidade de alguns aliados.
Bolsonaro escreve 67 anos depois no "Insta-testamento": "Peço a cada um que está lendo essa mensagem que jamais desista das nossas cores, dos nossos valores! Temos riquezas e um povo maravilhoso que nenhum país no mundo tem. Com honestidade, com honra e com Deus no coração, é possível mudar a realidade do nosso Brasil." Só não se trata, também nesse caso, de uma despedida porque ele escreve em seguida: "Assim seguirei". Mas se percebe também aí o tom de resistência e o apelo escatológico.
Cumpre que se indague então: resistência exatamente a quê ou a quem? E temos uma resposta realmente formidável: Bolsonaro é o homem que resiste à democracia, ao estado de direito, às vacinas, à ciência, às medidas sanitárias de contenção da pandemia, à independência entre os Poderes, à tolerância, à diversidade, à pluralidade, às instituições, à preservação do meio ambiente, aos direitos humanos, à preservação das terras indígenas. E muitos outros "et cetera" civilizatórios.
Tudo o que alude a uma sociedade de direitos conspira contra aquilo que ele entende por "nossas cores" e "nossos valores". E, como se sabe, nem o PSOL nem o PT têm qualquer relação com a facada que contribuiu, sim, para lhe tirar a saúde, mas também para lhe dar a Presidência da República, como atestaram urnas invioláveis, limpas e eletrônicas.
Bolsonaro pretende ser o mártir da sociedade da exclusão, do reacionarismo e da violência. Que se recupere para poder responder por isso.