Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Medo da urna: Bolsonaro finge mansidão em resposta a fala correta de Fachin
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Em evento ligado a teste de segurança nas eleições promovido pelo TSE, o presidente da Corte, Edson Fachin, fez a seguinte afirmação diante de ministros e técnicos:
"A contribuição que se pode fazer é de acompanhamento do processo eleitoral. Quem trata de eleições são forças desarmadas, e, portanto, as eleições dizem respeito à população civil, que, de maneira livre e consciente, escolhe os seus representantes. Diálogo, sim. Colaboração, sim. Mas, na Justiça Eleitoral, a palavra final é da Justiça Eleitoral".
A fala é impecável. De resto, não é dirigida às Forças Armadas, mas àquele que também é chefe de Poder: Jair Bolsonaro. Mas Fachin é chefe de Poder? É o Judiciário na sua expressão eleitoral. Presidentes de Poderes não altercam com generais.
Na sua live, Bolsonaro decidiu posar de sonso ao se referir à fala de Fachin. É uma de suas facetas. Referiu-se, no entanto, ao processo eleitoral de modo um pouco mais brando do que de costume. Percebeu que sua militância golpista afasta eleitores em vez de atraí-los. Os chefões do Centrão deixaram clara a sua contrariedade. Afinal, o "Mito" não está sozinho nessa, digamos assim, empreitada para tomar o Brasil. Contestou Fachin como se o ministro estivesse criticando os militares. Distorceu ainda o conteúdo de um diploma legal, produzindo, como também é habito, desinformação.
Afirmou:
"Eu não sei se onde ele está tirando esse fantasma de que as Forças Armadas querem interferir na Justiça Eleitoral. Deixo claro que, em 2018, por ocasião das eleições, 56 mil militares participaram da segurança. E, em 2020, 32 mil militares."
E emendou:
"Deixo claro que as Forças Armadas não estão se metendo nas eleições. Elas foram convidadas por uma portaria do então presidente [do TSE] [Roberto] Barroso."
E leu um trecho da Portaria 578, do TSE, de 21 de setembro do ano passado. Transcrevo na íntegra os Incisos I e II do Artigo 1º, que ele citou com cortes:
"Art. 1º Fica instituída a Comissão de Transparência das Eleições (CTE) com a finalidade de:
I - Ampliar a transparência e a segurança de todas as etapas de preparação e realização das eleições;
II - Aumentar a participação de especialistas, entidades da sociedade civil e instituições públicas na fiscalização e auditoria do processo eleitoral"
E deu destaque, em seguida, aos Incisos I e II do Artigo 2º (também seguem na íntegra):
"Art. 2º A Comissão de Transparência das Eleições atuará nas seguintes etapas:
I - Planejamento de ações de ampliação da transparência do processo eleitoral: a CTE examinará o plano de ação do TSE para ampliação da transparência do processo eleitoral, podendo opinar sobre seu conteúdo e recomendar ações adicionais; e
II - Acompanhamento e fiscalização das fases de desenvolvimento dos sistemas eleitorais e de auditoria do processo eleitoral: a CTE acompanhará as rotinas e etapas referentes aos procedimentos de desenvolvimento dos sistemas eleitorais e aos eventos e mecanismos de auditoria do processo eleitoral, podendo opinar sobre os trabalhos e recomendar ações adicionais.
Antes que prossiga, observo: quando militares participam de ações que garantem o exercício da cidadania e do direito de voto, estão cumprindo deveres constitucionais — estes, sim, previstos no Artigo 142. E, como se sabe, o fazem por solicitação dos Poderes da República, não por decisão autônoma. Assim, dentro das regras do jogo, a sua participação do auxílio ao processo eleitoral cumpre a Constituição, não a rasga. Mas não tenho esperança de que Bolsonaro saiba a diferença entre uma coisa e outra. Nem ele nem os ministros generais que conspiraram contra o sistema de votação, segundo apurou inquérito da Polícia Federal. Adiante.
Como se pode notar, o texto é claríssimo ao definir as atribuições da Comissão, não do representante das Forças Armadas no grupo. Criou-se um colegiado. O general não integrou o grupo para chefiá-lo. Tampouco se lhe atribuiu poder de veto. Só para lembrar:
Por parte das instituições e órgãos públicos:
- senadoras Eliziane Gama e Katia Abreu;
- deputada Margarete Coelho;
- o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União (TCU);
- general Heber Garcia Portella, comandante de Defesa Cibernética, pelas Forças Armadas;
- a conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Luciana Diniz Nepomuceno;
- o perito criminal Paulo César Hermann Wanner, do Serviço de Perícias em Informática da Polícia Federal;
- o vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gustavo Gonet Branco, pelo Ministério Público Eleitoral (MPE).
Especialistas em Tecnologia da Informação e representantes da sociedade civil:
- André Luís de Medeiros Santos, professor da Universidade Federal de Pernambuco;
- Bruno de Carvalho Albertini, professor da Universidade de São Paulo;
- Roberto Alves Gallo Filho, doutor pela Universidade Estadual de Campinas;
- Ana Carolina da Hora, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-DireitoRio);
- Ana Claudia Santano, coordenadora-geral da Transparência Eleitoral Brasil;
- Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil;
- Luciana Veiga, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP);
- Raquel Meneguello, coordenadora do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) da Unicamp;
- Gabriela Tarouco, do Electoral Integrity Project.
Sigamos com Bolsonaro.
Depois de ler trecho da portaria, Bolsonaro seguiu:
"Então, ministro Fachin, a gente não entende essa maneira aí de o senhor falar, se referir às Forças Armadas, que foram convidadas a participar do processo eleitoral. Essa portaria, quando o ministro Barroso era presidente... Agora o senhor é presidente. E o senhor tem poder para revogar a portaria. Eu não estou pedindo para o senhor fazer isso, mas o senhor pode revogar a portaria. Enquanto a portaria tá em vigor, as Forças Armadas foram convidadas, eu, como chefe supremo das Forças Armadas, determinei que prossigam nessa missão. Não existe interferência. Ninguém quer impor nada. Ninguém quer atacar as urnas eletrônicas, atacar a democracia, nada disso. Ninguém tá fazendo aí... incorrendo em atos antidemocráticos. Pelo amor de Deus!"
Quanto tempo dura a mansidão de Bolsonaro? Ninguém sabe. Ele havia atacado as urnas no dia anterior. A mais recente pesquisa Genial-Quaest acendeu um sinal literalmente vermelho para alguns aliados. Teme-e que, com inflação nas alturas, combustíveis nos cornos da Lua e conversa golpista, Bolsonaro colabore para a eleição de Lula já no primeiro turno — possibilidade real, segundo o levantamento.
CHEFE SUPREMO DA ELEIÇÃO TAMBÉM?
Voltemos à fala do presidente. As Forças Armadas não foram convidadas para a comissão porque, segundo a Constituição, têm Bolsonaro como o seu chefe supremo da hora. E sim porque são "instituições nacionais permanentes e regulares".
Bolsonaro ainda não entendeu que ele é o chefe de forças que pré-existem à sua própria existência. Não é ele que confere legitimidade às Forças Armadas ou que define o seu papel. Elas são permanentes. Ele, felizmente, não. É evidente que o representante dos militares na Comissão de Transparência não poderia ter se comportado como um braço do "chefe supremo" porque esse "chefe supremo" disputa a eleição. O general Heber Garcia Portella não pode integrar oigrupo obedecendo, no âmbito da comissão, às ordens e vontades e um dos candidatos. Ou estou enganado?
Atenção! Antes da "portaria do Barroso", como diz Bolsonaro, havia já a Resolução 23.603, de 12 de dezembro de 2019 — o ministro assumiu o comando do tribunal em 25 de maio de 2020. Esse documento também trata do processo de fiscalização das eleições e traz, no Artigo 5º, os entes que dela podem participar. Entre eles, no Inciso XIII, as Forças Armadas. Transcrevo.
Art. 5º Para efeito dos procedimentos previstos nesta Resolução, salvo disposição específica, são consideradas entidades fiscalizadoras, legitimadas a participar das etapas do processo de fiscalização:
I - Partidos políticos e coligações;
II - Ordem dos Advogados do Brasil;
III - Ministério Público;
IV - Congresso Nacional;
V - Supremo Tribunal Federal;
VI - Controladoria-Geral da União;
VII - Polícia Federal;
VIII - Sociedade Brasileira de Computação;
IX - Conselho Federal de Engenharia e Agronomia;
X - Conselho Nacional de Justiça;
XI - Conselho Nacional do Ministério Público;
XII - Tribunal de Contas da União;
XIII - Forças Armadas;
XIV - Entidades privadas brasileiras, sem fins lucrativos, com notória atuação em fiscalização e transparência da gestão pública, credenciadas junto ao Tribunal Superior Eleitoral; e
XV - Departamentos de tecnologia da informação de universidades credenciadas junto ao Tribunal Superior Eleitoral.
O documento foi depois substituído pela Resolução 23.673, de 14 de dezembro do ano passado. Esse Artigo 5ª se tornou o 6º do novo texto.
O TRUQUE
Como se nota, documento anterior à "resolução do Barroso" já emprestava papel de fiscalização às Forças Armadas -- e a outros entes. Mas nunca se pretendeu com isso ter um agente desestabilizador do processo eleitoral, atuando, de resto, fora do ambiente da comissão.
Ocorre que Bolsonaro faz carga contra as urnas eletrônicas antes ainda de ser eleito. Acusava, em companhia de outros setores da extrema direita, manipulação para eleger os petistas. Quando ele próprio virou a negação da tese conspiratória, inventou, então, a canalhice de que teria sido eleito no primeiro turno.
Atacar o sistema eleitoral como parte da escalada autoritária é o que a extrema direita populista faz no mundo inteiro. Cinco estados americanos dispõem de uma modalidade votação eletrônica. O resto é o verdadeiro twist-do-americano-doido. Os estados em que Trump pôs em dúvida a vitória dos democratas têm sistemas quase movidos a chifre de alce queimado.
NOTEM O CONVITE...
E notem o convite: "Se Fachin quiser revogar a portaria..." Ele está doidinho para a comissão ser extinta porque assim poderá dizer: "Viram só? Não falei?"
Pois eu lhes digo: se não agora, que fique para depois. As Forças Armadas têm de ser tiradas da transparência e da fiscalização. Com efeito, volto à fala de Fachin: eleição é para forças desarmadas.
Essas comissões têm de ser formadas por especialistas em informática, partidos políticos, entidades da sociedade civil voltadas à transparência, advogados, cientistas políticos, representantes do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público... Quanto mais presente estiver o interesse público, melhor.
Militar não! E a gente promete não propor eleição direta para escolher general, comandante e afins. Também não iremos impor as regras da sociedade civil nos quarteis. De resto, militares dispõem de seus próprios códigos, além da Constituição.
De fato, eles não têm de se meter com eleições — a não ser como garantia do exercício cidadão, fazendo com que as urnas eletrônicas cheguem a todos os cantos e garantindo, se necessário, a segurança dos eleitores, segundo solicitação civil.
ENCERRO
Bolsonaro tentou afetar mágoa com Fachin, falando pelas Forças Armadas:
"Eu sou capitão do Exército. É uma forma bastante descortês de tratar uma instituição que presta em várias áreas excelentes serviços ao Brasil."
Descortesia nenhuma! O ministro falava com o presidente da República. Chefe de Poder não manda recado para generais.