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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Campos Neto não explica o maior juro da Terra, mas seduz até com subjuntivo

Roberto Campos Neto durante entrevista ao programa "Roda Viva". Quem achar a sua resposta que explique juros a 13,75%, por favor, envie ao escriba... -
Roberto Campos Neto durante entrevista ao programa "Roda Viva". Quem achar a sua resposta que explique juros a 13,75%, por favor, envie ao escriba...

Colunista do UOL

14/02/2023 04h32

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Assisti, claro!, à entrevista de Roberto Campos Neto ao "Roda Viva" nesta segunda. Preparei-me, de caneta em punho, para saber por que o juro real do Brasil é o mais alto do mundo. Sempre entendi, e toda gente diz, que isso é uma métrica de risco. Sendo assim, aqueles que financiam o governo exigiriam garantias maiores diante de um eventual calote. Pergunta: existe aposta mais segura hoje do que os títulos do governo? Há mesmo algum risco, ainda que remoto, de calote na dívida, toda ela contraída em reais? A resposta é "não".

Se assim é, por que temos, então os juros reais mais altos do mundo, em torno de 8%, quando a segunda maior taxa, a do México, fica em 5,5%? Quando Campos Neto raspou o assunto, citando aquele país, afirmou que as nossas taxas são historicamente maiores dos que as mexicanas. Então tá. Eu deveria me conformar com essa resposta? Mais: a dívida brasileira, dado o tamanho da economia, é um problema a ponto de justificar tal preço? Vamos seguir.

A resposta, obviamente, não apareceu na entrevista. Aqui e ali, Campos Neto fez tímidos elogios à equipe econômica e ao esforço fiscal do governo com o entusiasmo de quem chupa um cabo de guarda-chuva velho — um novo ainda exalaria, sei lá, o odor de algum polímero... Ok. Presidente de Banco Central, alguém poderia observar, não precisa mesmo ser muito entusiasmado. Também acho. Recomendo que não vá votar com uniforme de candidato à Presidência e que não participe de grupo de WhatsApp do governo derrotado. Nem do vitorioso. Afinal, a autonomia, como depreendi de sua participação no Roda Viva, é quase um estado de beatitude.

Ele já havia afirmado num seminário em Miami a seguinte pérola:
"A principal razão, no caso da autonomia do BC, é desconectar o ciclo de política monetária do ciclo político, porque eles têm diferentes lentes e diferentes interesses. Quanto mais independente você é, mais efetivo você é, e menos o país vai pagar em termos de custo-benefício da política monetária".

DIRETORES DO BC OU VESTAIS?
Para que assim fosse; para que pudesse haver uma autonomia "desconectada" do ciclo político, o Banco Central teria de ser formado não por pessoas oriundas do mercado financeiro e com óbvios vínculos políticos. Seria necessário que os nove diretores fossem vestais, as virgens que guardavam o templo de Vesta em Roma.

Respondiam pela manutenção do fogo sagrado. Eram escolhidas entre as famílias mais poderosas, ali pelos sete anos, com a anuência dos pais, e preparadas para guardar o templo. Aconselhavam as famílias, podiam ser chamadas para dirimir conflitos familiares e até para opinar sobre assuntos de Estado. Atuavam, muitas vezes, como conselheiras do Senado. Mas atenção! Virgens eram e assim tinham de permanecer. Quebrar a castidade rendia morte: ou eram enterradas vivas ou jogadas do alto do monte Capitolino. Os nove diretores do BC correm bem menos riscos do que as 18 vestais, né? E, por óbvio, virgens profissionais não são. Ah, sim: uma vestal tinha de servir por 30 anos. Depois desse tempo, podia se casar. A quarentena de um diretor do BC é bem menor. E a vida quase sempre se torna ainda mais sorridente, e o sorriso ainda mais dourado.

HAVERÁ PAX?
Vai se selar a "pax" entre o BC e o governo? Num dado momento, um generoso Campos Neto afirmou que "é preciso ter uma boa vontade com o governo"... É, vocês entenderam direito... Obviamente, ele não acenou com nenhuma mudança. E nem poderia fazê-lo numa entrevista.

Eu estava doido para saber, mas não houve a oportunidade de ele discorrer sobre ao assunto — as vestais podiam ser mais detalhistas na sua conversa com as famílias romanas —, se os juros a 13,75%, com 8% de taxa real, farão a inflação convergir para a meta. Afinal, a dita-cuja é de demanda? Tem muita gente querendo comprar e está faltando produto, o que eleva os preços. É isso o que está em curso? Precisamos desacelerar o crescimento para devolver os preços a seu lugar?

Dei uma olhada na repercussão de sua entrevista nos veículos noticiosos. Estavam em estado de Mistérios Gozosos. Da Anunciação a Jesus entre os doutores, tinha-se a impressão de que tudo havia acontecido ali...

ERRO DE FUNDO
Será que defendo uma mudança na legislação que regula a autonomia do Banco Central? Como tenho dificuldade de lidar com essa ideia -- até a das vestais, de certo modo, tinha um condicionamento de origem--, acho esse debate errado. Ademais, reconheço que não vai acontecer porque a urdidura, então, do Congresso que votou o texto não mudou em essência.

Embora as Casas legislativas tenham aprovado a Lei Complementar 179, é claro que a dita autonomia do BC se insere no grande capítulo da "cultura antipolítica". Há uma fantasia influente segundo a qual é possível blindar os assuntos de governo da má influência dos políticos — que, pois, devem ser chamados de "demagogo", "populistas", "ladrões"... Se não se toma cuidado, o país — e os países — se transformam numa reunião de guildas que reivindicam a sua autonomia: a do BC, a das agências reguladoras, a do Ministério Público, a da PF, a da Defensoria Pública... Alguns grupos são mais bem-sucedidos do que outros nesse esforço. Como esquecer que o ódio à política ajudou a criar e a fortalecer a Lava Jato, que nos empurrou para a fascistização?

"Ah, mas foi o Congresso que aprovou a autonomia, e líderes importantes a defendem ainda agora". É verdade. Os interessados souberam fazer o lobby na hora certa, aproveitando-se da fraqueza de um presidente arruaceiro. E agora a coisa está feita. Até um debate sobre eventual mudança na lei, conservada a tal "autonomia", é de pronto rechaçado. O erro de fundo está, na verdade, no ódio à política. A sem-cerimônia com que se escrevem textos sustentando ser preciso blindar isso e aquilo dos políticos deveria envergonhar os escribas. Mal se dão conta de que estão dizendo que é preciso blindar isso aquilo da influência do voto — ou seja, do povo. E não é raro que se saque a palavrinha mágica com que ofender o oponente: "Populista!".

O COPOM. OU "A LOUCURA CONTINUA"
O Boletim Focus, aquela ausculta que o Banco Central faz do mercado financeiro, prevê que a Selic chegue ao fim do ano em 12,75%, com inflação em 5,79%, o que implicaria juros reais de 6,96%. E eles seguiriam sendo... os mais altos do mundo!

Não deixa de ser curioso que algumas lorpas sustentem que, ao criticar o BC, Lula estaria buscando um bode expiatório para o baixo crescimento deste ano. Mas a previsão de baixo crescimento deste ano está dada desde 2022! E pode ser ainda pior. Ao "Roda Viva", Campos Neto negou que o crédito esteja secando. E, no entanto, está. Como sabem dez entre dez banqueiros. Até porque o balanço dos bancos piorou bastante, e isso implicará aversão ao risco.

Assim, mantém-se, como uma doxa, uma taxa de juro que impede o país de crescer. O BC tem autonomia. O presidente protesta. E é acusado de buscar bodes expiatórios.

Se alguém conseguiu saber, peço, por favor, que me informe:
a: por que o Brasil tem os juros reais mais altos do mundo?:
b: existe risco, ainda que remoto, de calote da dívida interna?;
c: a inflação que está aí é de demanda -- e, pois, responde com queda a juros altos?

Até peço desculpas por não ter me deixado mesmerizar pela retórica adocicada de Campos Neto. É que busquei respostas para perguntas que me parecem importantes. E elas não estavam lá. Sua maior ousadia foi mesmo a conjugação de "abster-se" na primeira pessoa do pretérito do subjuntivo: lascou um "se eu me abstesse".

Bem, ainda que eu me abstivesse de fazer esse reparo, as respostas não estariam lá. Errar, nesse caso, não é assim tão grave. Mas e quando se erra com uma taxa de juro que vai de 2% a 13,75% em 17 meses? No período, o custo financeiro das empresas cresceu sete vezes e lá em cima ficou. Dadas as reações, no entanto, Campos Neto seduziu. Até com seu subjuntivo — na hipótese de que tenham percebido, é claro...