Reinaldo Azevedo

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Opinião

Kamala arrebata democratas em 24 horas e diz conhecer criminosos como Trump

Ganhar a eleição certamente será muito mais difícil a Kamala Harris do que se firmar como a candidata do Partido Democrata à Presidência. A ascensão de seu nome foi fulminante, e a consolidação, acachapante. Até o fim desta segunda, nada deu errado para a vice de Joe Biden desde a hora em que o titular anunciou, na tarde de domingo, que não concorreria a reeleição. Todos os potenciais adversários internos apoiaram o seu nome, e as doações chegaram US$ 81 milhões em um dia. Os democratas deram uma impressionante prova de unidade, e, agora, quem tem de rever a sua estratégia é Donald Trump, que deu a entender na Convenção Republicana que a eleição seria apenas homologatória. Não será. Ontem à noite, levou o primeiro petardo da já ungida Kamala: ela afirmou que sabe lidar com criminosos do feitio do fanfarrão republicano.

Vem chumbo grosso por aí. Relembro dois trechos do discurso de Trump na quinta para que nos lembremos de como ele enxergava a disputa. Simulando o que nunca foi, resolveu simular a coreografia da pomba da paz:
"Amigos, delegados e cidadãos americanos. Estou diante de vocês esta noite com uma mensagem de confiança, força e esperança. Daqui a quatro meses, teremos uma vitória incrível e daremos início aos quatro maiores anos da história do nosso país.
Juntos, lançaremos uma nova era de segurança, prosperidade e liberdade para cidadãos de todas as raças, religiões, cores e credos.
A discórdia e a divisão na nossa sociedade devem ser curadas. Devemos curá-las rapidamente. Como americanos, estamos unidos por um destino único e por um destino partilhado. Nós vamos nos erguer juntos. Ou desmoronamos.
Estou concorrendo para ser presidente de todo os Estados Unidos da América, não de metade, porque não há vitória em vencer para apenas metade do país.
Portanto, esta noite, com fé e devoção, aceito com orgulho a sua nomeação para concorrer ao cargo de presidente dos Estados Unidos. Obrigado! Muito obrigado!
E faremos isso direito. Nós vamos fazer isso direito."

Poderia ser a fala de quem propõe uma conciliação entre fortes, ainda que inicie esse trecho do discurso dando a vitória como assegurada. Até aí, vá lá, assim fazem todos. Para quem conhecia o falastrão que se fez desmerecendo adversários e inventando conspirações, a fala soou estranha. Ocorre que não ele não estava apelando à paz entre adversários que se respeitam. Na sequência, ele deixou claro que via os democratas de joelhos, rendidos. Leiam:
"Não importa que obstáculo surja em nosso caminho, não iremos esmorecer. Não vamos nos curvar. Não recuaremos e nunca deixarei de lutar por vocês, por sua família e por nosso magnífico país. Nunca!
E tudo o que tenho para dar -- com toda a energia e luta, de coração e alma -- eu ofereço à nossa nação nesta noite. Muito obrigado!
Eu prometo isto à nossa nação: vamos mudar o nosso país. E vamos mudá-lo muito rapidamente. Obrigado!
Esta eleição deveria ser sobre as questões que o nosso país enfrenta e sobre como tornar a América bem-sucedida, segura, livre e grande novamente.
Numa época em que a nossa política, muitas vezes, nos divide, agora é o momento de lembrar que somos todos cidadãos americanos -- somos uma nação sob Deus, indivisível, com liberdade e justiça para todos.
E não devemos criminalizar a dissidência ou demonizar a divergência política, que é o que tem acontecido ultimamente no nosso país, a um nível jamais visto antes. Nesse espírito, o Partido Democrata deve parar imediatamente de usar o sistema judicial como uma arma e de rotular o adversário político como 'inimigo da democracia'. Especialmente porque isso não é verdade. De fato, sou eu quem está salvando a democracia para o povo do nosso país.
Se os democratas quiserem unificar o nosso país, deveriam abandonar essa caça às bruxas partidária, da qual eu sou vítima há aproximadamente oito anos. E devem fazê-lo sem demora e permitir a realização de eleições que sejam dignas do nosso povo. Nós vamos vencer de qualquer maneira."

"Criminalizar a dissidência?" Este senhor "criminalizou" os vitoriosos de 2020. A invasão do Capitólio só aconteceu porque ele não reconheceu o resultado das eleições e acusou uma fraude que não existiu, o que repete na fala acima ao mencionar "a realização de eleições que sejam dignas do nosso povo", num indício claro de que, se perder, está disposto a repetir o comportamento criminoso da eleição passada. Mas há mais do que isso.

Estava tão certo do sentido homologatório do embate que tem o desplante de dar uma espécie de ultimato aos adversários: que o Partido Democrata pare, disse, de usar o sistema judicial como uma arma contra os adversários. Ele, com efeito, não via uma disputa, uma competição, um confronto. O pleito teria se convertido num ritual de humilhação, de sujeição e de rendição.

E TUDO FAZIA CRER QUE...
E tudo fazia crer que assim seria. Depois do desempenho desastroso de Biden no debate de 27 de junho -- e poucos nos demos conta da atuação medíocre do próprio Trump, limitando-se a mentir compulsivamente -- e dada a resistência do presidente, que assegurava que não desistiria da disputa, o republicano resolveu fazer o seu discurso dito "moderado" -- para quem não leu as entrelinhas -- como uma das faces de sua arrogância, não como um chamamento à paz.

Se o debate e as gafes posteriores de Biden deram ao republicano a certeza de que não haveria resistência possível, os desdobramentos decorrentes do ataque a tiro que sofreu pareciam pôr um ponto final à batalha com três meses de antecedência. E Trump se viu como o vitorioso, por antecipação, de ao menos uma eleição presidencial, já que, nas urnas, ele perdeu para Hillary Clinton em 2016 com uma diferença de quase três milhões de votos. No modelo americano, infelizmente, quem não ganha pode levar; quem vence pode ficar sem as batatas. Não é um bom modo de fazer as coisas, é claro!

Mas aí veio o que pode ser o reverso da fortuna, a ver. Como escrevi aqui ontem, todos os males haviam saído da Caixa de Pandora, mas restava a esperança lá no fundo. Nesta segunda, os democratas evidenciaram que estão de volta ao jogo. E com a disposição de quem ultrapassa com força os primeiros percalços.

AS GROSSERIAS
Com a estupidez habitual, o agora candidato mais velho da história das eleições americanas, resolveu espezinhar Biden:

"É um novo dia, e Joe Biden não se lembra de ter abandonado a disputa ontem! Ele está pedindo sua agenda de campanha e marcando conversas com os presidentes Xi, da China, e Putin, da Rússia, sobre o possível começo da Terceira Guerra Mundial. Biden está 'afiado, decidido, enérgico e pronto pra luta'!"

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Alguém detecta nas palavras acima aquele cara que chegou a falar em união na quinta? Escreveu mais:
"Os democratas escolhem um candidato, o desonesto Joe Biden. Ele perde feio o debate, depois entra em pânico e comete erro atrás de erro. É avisado de que não poderá vencer, e decidem que eles vão escolher outro candidato, provavelmente [Kamala] Harris -- Inédito! Essas pessoas são a verdadeira AMEAÇA PARA A DEMOCRACIA".

Sete presidentes já desistiram de concorrer à reeleição. Tendo exercido um único mandato, no entanto, foram apenas três antes de Biden, todos no Século 19. O evento, pois, é raro, e é possível que Trump não apostasse que fosse acontecer. Mas aconteceu. E, agora, o que era desalento entre os democratas passou a alimentar a expectativa de uma virada. Todas as lideranças importantes do partido se uniram a Kamala. Dos medalhões, apenas Barack Obama havia se mostrado reticente até a noite desta segunda.

A convenção do partido está marcada para o fim de agosto, mas o jogo já está jogado, e Kamala será mesmo a candidata. É claro que a estratégia republicana tem de mudar. O discurso delinquente sobre imigração vai continuar, até porque se considera ser a maior fragilidade da ainda vice-presidente, uma vez que Biden havia delegado a ela a questão. Mas convenham: Trump não precisa de motivos, apenas de pretextos. Sua cruzada contra a imigração, associando-a insegurança pública, trabalha com dados mentirosos.

OS DELEGADOS E O PRIMEIRO PETARDO
O desempenho de Kamala no primeiro dia como pré-candidata é realmente fabuloso. Além de ter conquistado um coro de apoiadores de peso, já reunia, no fim da noite de ontem, delegados de sobra para receber a indicação do partido. São necessários 1.976, mas ela contava, segundo a agência Associated Press, com 2.579.

O Partido Democrata tem expertise para se livrar de armadilhas. O por ora silente Barack Obama se apresentou como o primeiro negro a se tornar presidente, não como o primeiro presidente negro. Parece jogo de palavras, mas não é. Como evidenciou em seu livro de memórias, "Terra Prometida", esta era a visão que o populismo de direita espalhava sobre a sua ascensão:
"O governo estava tomando dinheiro, empregos, vagas em faculdades e status social de gente trabalhadora e merecedora como nós e entregando a eles -- os que não compartilham de nossos valores, que não trabalhavam tanto como nós..."

Isso não lhes parece uma espécie de divisa do trumpismo? Driblar o ressentimento, que Trump manipula tão bem, será um dos desafios de Kamala.

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Isso não significa, no entanto, que o biltre fanfarrão não deva ser tratado com dureza. A sua primeira reação à desistência de Biden prenuncia uma guerra suja. E a candidata democrata terá de reagir com a dureza necessária. Parece que ela está disposta.

Protagonizou ontem à noite o primeiro ato de campanha, já como a ungida informal de seu partido. Falando em Willmigton, Delaware, a ex-promotora disse que conhece tipos como Trump e já enfrentou criminosos. Fez uma espécie de resumo da folha corrida do seu adversário:
"Enfrentei criminosos de todos os tipos: predadores que abusaram de mulheres; fraudadores que enganaram consumidores; trapaceiros que quebraram as regras para seu próprio benefício. Então, ouçam-me quando digo: 'Eu conheço o tipo de Donald Trump'".

Para quem tratava a eleição como conquista assegurada e se julgava na condição de dar um ultimato aos adversários, humilhando-os, a situação de Trump se complicou. E muito!

É a esperança saindo do fundo da caixa.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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