Vídeo distorce fala de Dino e atribui falsas declarações a Lenin
Letícia Dauer
Colaboração para o UOL, em São Paulo
28/02/2024 15h37
Vídeo de 2015 que circula nas redes sociais distorce fala do ministro Flávio Dino, do STF, ao sugerir que ele segue uma lista de regras comunistas, conhecida como "Decálogo", escrita por Vladimir Lenin, líder da Revolução Russa.
O trecho de uma entrevista de Dino foi retirada do contexto. O líder soviético também não escreveu a obra, e o boato das "regras comunistas para revolução" existe pelo menos desde 1940 nos Estados Unidos.
O UOL Confere considera distorcido conteúdos que usam informações verdadeiras em contexto diferente do original, alterando seu significado de modo a enganar e confundir quem os recebe.
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O que diz o post
Vídeo mostra Flávio Dino concedendo uma entrevista. Sobreposta às imagens, foram escritas as frases: "Dino não quer que você descubra esse vídeo portanto salve" e "Prepare-se!".
No trecho selecionado, ele afirma: "Em primeiro lugar, é preciso ser coerente, né. E eu sou uma pessoa coerente com meus princípios, com meus valores, com as minhas ideias. Em segundo lugar, obviamente, como um socialista, comunista, marxista, eu faço aquilo que Lenin recomendava". A última frase é repetida em câmera lenta e depois a fala de Dino é cortada.
Em seguida, é feita uma montagem com as fotos do líder soviético e do agora ministro do STF com frase "O mentor intelectual do COMUNISTA FLÁVIO DINO".
Na segunda parte do vídeo, a narradora cita o "Decálogo", de autoria de Lenin, com a seguinte lista de "mandamentos":
"1. Corrompa a juventude e dê-lhe liberdade sexual.
2. Infiltre e depois controle todos os veículos de comunicação em massa
3. Divida a população em grupos antagônicos, incitando-os a discussões sobre assuntos sociais
4. Destrua a confiança do povo em seus líderes
5. Fale sempre sobre democracia e estado de direito, mas tão logo haja oportunidade assuma o poder sem nenhum escrúpulo
6. Colabore para o esbanjamento do dinheiro público. Coloque em descrédito a imagem do país, especialmente no exterior, e provoque o pânico e o desassossego na população
7. Promova greves mesmo ilegais nas indústrias vitais do país
8. Promova distúrbios e contribua para que as autoridades constituídas não as coíbam
9. Contribua para a derrocada dos valores morais da honestidade e da crenças nas promessas dos governantes. Nossos parlamentares infiltrados nos partidos democráticos devem acusar os não comunistas [...]"
Por que é distorcido
Ministro não cita o Decálogo. A peça desinformativa retirou do contexto um trecho da entrevista de Dino concedida a TV Brasil, em abril de 2015. No programa, o então governador do Maranhão pelo PCdoB conclui seu pensamento com a frase "eu faço aquilo que Lenin recomendava: a análise concreta da situação concreta". Em nenhum momento, ele menciona regras comunistas. Confira a declaração a partir de 28min11s no perfil oficial da emissora no Youtube (aqui) ou abaixo:
Decálogo não foi escrito por Lenin. Em consulta a bibliografia oficial do líder soviético (aqui), não há nenhuma obra com esse nome. Ao UOL Confere, o professor André Kaysel, do Departamento de Sociologia do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da Unicamp, reforçou que não existe registro da existência do Decálogo. Segundo o sociólogo, há mais de 10 anos menções ao texto falso são detectadas em discursos de parlamentares de extrema direita.
É algo que tem circulado internacionalmente há algum tempo e que atribui um suposto plano de dominação aos comunistas, no qual eles dominariam o mundo, corrompendo a juventude, destruindo a família e tomando os meios de comunicação -- bem na linha das teorias da conspiração. Mas é inteiramente falso.
André Kaysel, da Unicamp
Na realidade, o suposto "Decálogo de Lenin" é uma reprodução do texto com o título "Communist Rules for Revolution" (Regras Comunistas para Revolução", em português) que foi atribuído falsamente ao político. O conteúdo enganoso já foi checado pelo Estadão Verifica (aqui) e pelo site norte-americano Snopes (aqui, em inglês).
As "Regras Comunistas para Revolução" são boato antigo. Em 1970, o jornal The New York Times publicou uma matéria (aqui, em inglês) que já denunciava a farsa. Segundo o jornal, a lista "foi reproduzida em publicações de direita, anúncios em jornais de pequenas cidades e revistas de lobby de armas durante um quarto de século" com intuito de atacar o movimento comunista.
Origem do boato. As "regras comunistas" foram supostamente elaboradas a partir de um documento obtido pelos Aliados (grupo de países que venceram a Primeira Guerra Mundial) em maio de 1919, em Düsseldorf, na Alemanha, e a farsa circula pelo menos desde a década de 40 nos Estados Unidos. No livro "They never said it: a Book of Fake Quotes, Misquotes, and Misleading Attributions" ("Eles nunca disseram isso: um livro de citações falsas, errôneas e enganosas", em português), publicado em 1989, o historiador Paul F. Boller Jr. e o cientista político John George Jr. reforçam que a lista é uma fraude e nunca foi autenticada por órgãos oficiais (ver na página 142 aqui).
As 'Regras' são obviamente falsas; não aparentam ser nem um pouco de 1919. Conservadores respeitáveis como William F. Buckley,Jr., M. Stanton Evans, e James J. Kilpatrick, classificaram o documento como uma falsificação. Ele foi denominado como uma farsa pelo boletim anticomunista, o 'Combat'. Uma cuidadosa pesquisa nos arquivos do FBI, CIA, Subcomitê de Segurança Interna do Senado, e nas Bibliotecas do Congresso, falhou em apresentar qualquer vestígio 'das regras'. J. Edgar Hoover, falecido diretor do FBI, declarou que se pode 'especular logicamente que o documento é espúrio'. Ainda assim, continuou a ser citado como autoridade nos anos 80.
They never said it
Viralização. Até as últimas 24 horas, o vídeo registra 2,2 milhões de visualizações, 45,2 mil curtidas e 15 mil compartilhamentos.
Quem foi Lenin?
Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido como Lenin, foi um político, intelectual e revolucionário russo. Ele atuou como chefe de governo da Rússia Soviética e da União Soviética de 1917 até 1922, quando morte foi acometido por uma crise de hemiplegia —perda grande da função motora— e teve de se afastar do poder.
Lenin tentou adaptar a teoria marxista do século 19 à realidade russa do século 20 e provar que — ao contrário das teses de Karl Marx — uma revolução comunista era possível em um país como a Rússia, onde o capitalismo dava seus primeiros passos. Ele também propôs a tese do "centralismo democrático", na qual os marxistas podem discutir livremente entre si antes de agir, mas, na hora da ação, sua obrigação é obedecer, com disciplina militar, à liderança partidária, segundo informações da biografia do revolucionário (veja aqui).
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