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Transcrições de grampos usadas para incriminar médica no Paraná trocam "raciocinar" por "assassinar"

Virginia Helena Soares de Souza, medica chefe da UTI do hospital Evangélico de Curitiba, durante prisão - Henry Milléo/Gazeta do Povo/Futura Press
Virginia Helena Soares de Souza, medica chefe da UTI do hospital Evangélico de Curitiba, durante prisão Imagem: Henry Milléo/Gazeta do Povo/Futura Press

Rafael Moro Martins

Do UOL, em Curitiba

28/02/2013 20h29

Policiais responsáveis por transcrever as escutas telefônicas usadas pela médica Virginia Helena Soares de Souza anotaram “assassinar” quando na verdade ela disse “raciocinar” num diálogo com colega da UTI (unidade de terapia intensiva) do Hospital Evangélico, em Curitiba. A reportagem do UOL teve acesso à gravação, em que pode se ouvir claramente as palavras da médica.

A transcrição, em que consta o registro do verbo “assassinar”, é usada para embasar o pedido de prisão temporária da médica, feito em 31 de janeiro pela delegada-titular do Nucrisa (Núcleo de Repressão aos Crimes Contra a Saúde), Paula Brisola, ao qual a reportagem também teve acesso.

Nesta quinta-feira (28), a própria polícia admitiu o erro, em nota oficial. “(...) Há nos autos uma corrigenda substituindo o verbo 'assassinar' por 'raciocinar'”, diz trecho da nota.

Virginia está presa desde o último dia 19, suspeita de “antecipar mortes” no segundo maior hospital de Curitiba. Diretora da UTI geral desde 2006, ela foi indiciada por homicídio qualificado. A polícia investiga seis óbitos que considera suspeitos, ocorridos sob os cuidados de Virginia. Outros três médicos e uma enfermeira foram presos entre os dias 23 e 25.

A reportagem não teve acesso à corrigenda –-um documento em que é feita a correção dos autos de degravação das escutas feitas nos telefones de Virginia. Na quarta, o UOL teve acesso às 200 páginas iniciais do inquérito.

Delas, fazem parte os autos de degravação e o pedido de prisão, entre outros documentos emitidos entre o fim de janeiro e o início de fevereiro. A corrigenda, porém, não faz parte desse lote.

O advogado de Virginia, Elias Mattar Assad, sugeriu à reportagem que a corrigenda teria sido feita apenas após seu escritório alertar para a confusão feita entre os verbos “raciocinar” e “assassinar”.

Após ouvir a declaração do defensor da médica, por volta das 19h desta quinta, o UOL procurou o delegado-geral Marcus Vinicius Michelotto e a assessoria de imprensa da Polícia Civil, mas nenhum dos dois atendeu às ligações feitas para seus telefones celulares.

“Jogada ardilosa”

A conversa foi gravada em 24 de janeiro. Virginia, de casa, conversa com médico. Segundo a polícia, no inquérito, tratam do “quadro clínico grave de um paciente e a lotação da UTI”. Veja a transcrição, conforme está nos autos de degravação e no pedido de prisão da médica:

Médico: Até o Anderson quer conversar com a doutora aqui.
Virginia: Esse foi caprichado, né?
Médico: Esse foi. Quadro clínico bonito, caprichou.
Virginia: Puta merda, Rodolfo. (risos)
Médico: Bem na hora que nós estamos tranquilos.
Virginia: (risos)
Médico: Ai, ai
Virginia: Nós estamos com a cabeça bem tranquila pra assassinar, pra tudo, né? Porque até a Itamara falou pensei em Lime (provavelmente faz referência à doença de Lyme).
Médico: Lime. Agora?
Virginia: É, então. É, querido, sei lá com que estamos lhe dando.

Porém, como a própria polícia reconhece, Virginia disse “estamos com a cabeça bem tranquila para raciocinar”. No mesmo diálogo, outro provável erro chama a atenção – na última frase de Virginia, parece mais provável que ela tenha dito “lidando”, e não “lhe dando”.

Para Assad, o erro “coloca em suspeição todo o trabalho de investigação”. Ele sugere que a troca de verbos foi intencional. “É uma maldade. Com essa jogada ardilosa, a delegada conseguiu a prisão temporária, depois converte em preventiva e demoniza a figura da médica, e depois a prisão dos outros médicos, para retirar a credibilidade de seus testemunhos.”

Na nota oficial, a polícia refuta a insinuação, e procura minimizar o erro. “O Departamento da Polícia Civil informa também que todos os mandados de prisão expedidos pela Justiça neste caso, até o momento, foram concedidos devido à análise de um inquérito com cerca de mil páginas e não por um verbo, como tenta provar o advogado de defesa de uma das suspeitas.”

 

Em outra nota, emitida na quarta, a polícia admite que escutas telefônicas foram o principal meio usado para colher evidências contra os médicos suspeitos. “A despeito da autorização judicial para infiltrar um policial na UTI dirigida pela doutora Virgínia Soares de Souza, a execução da medida se tornou inviável do ponto de vista operacional, optando-se pela interceptação telefônica autorizada judicialmente”, afirma o texto.

O caso

A investigação sobre a possível “antecipação de mortes” na UTI do Hospital Evangélico veio a público na terça-feira passada (19), com a notícia da prisão temporária da médica Virginia Helena Soares de Souza. As primeiras informações davam conta de que ela era suspeita de eutanásia – induzir pacientes à morte a pedido ou com o consentimento deles.

A ação, que envolveu cerca de uma dezena de policiais, recolheu prontuários e documentos com dados sobre internações e mortes na UTI do Evangélico. “Investigamos a antecipação de mortes dentro da UTI geral. Não falamos em eutanásia. Para nós, trata-se de homicídios”, afirmou, no dia seguinte, a delegada Paula Brisola.

Na sexta (22), o advogado de Virginia, Elias Mattar Assad, reuniu o filho e ex-funcionários dela para entrevista à imprensa. Em comum, todos falaram do gênio difícil da médica (“minha mãe sempre foi grosseira”, disse o filho) e sugeriram que a antipatia gerada por ela no Evangélico poderia estar por trás das denúncias.

No sábado (23), a polícia prendeu outros três médicos. Ao programa “Fantástico”, levado ao ar no dia seguinte pela da TV Globo, dois deles se disseram inocentes. Na segunda (25), uma enfermeira que era procurada desde o sábado apresentou-se à polícia. À noite, a Justiça decretou o fim do sigilo do inquérito.

O secretário da Segurança Pública do Paraná, Cid Vasques, revelou que a investigação começou em março de 2012, quando denúncias anônimas contra Virginia feitas por um ex-funcionário da UTI do Evangélico – que afirmou “trabalhar há anos na área da saúde e jamais ter visto algo, em nenhum hospital, de tamanha gravidade” – chegaram à Ouvidoria Geral do Estado. As revelações desencadearam a investigação que indiciou a ex-diretora médica da UTI (unidade de terapia intensiva) do Hospital Evangélico por homicídio qualificado.

Na denúncia, que abre o inquérito, lê-se que “muitos pacientes do hospital que se encontram em estado de coma, com risco de sequelas ou de demorarem para sair desta situação, têm a frequência respiratória de seus aparelhos diminuída. Após isso, são ministrados medicamentos que bloqueiam as vias respiratórias juntamente com os remédios diários, o que leva, em muito caso, ao óbito do paciente, propositalmente.”

Na quarta (27), o advogado da médica apresentou pedido de habeas corpus em que pleiteia a liberdade dela.