Para auditores, desconto bilionário concedido a empresas é fator-chave no rombo do Rio
A concessão de benefícios fiscais está no centro dos debates sobre a falência do Rio de Janeiro em 2016, cercada por denúncias de ilegalidades, injustiças e negligências. Documentos obtidos pela “Pública” confirmam que os descontos cedidos a empresas desempenharam um papel-chave no caos financeiro do Estado.
Em um desses documentos, os auditores estaduais afirmam: “O assunto precisa ser enfrentado de forma radical. O ajuste das finanças estaduais passa pela reavaliação a fundo das renúncias tributárias”.
O estudo, disponibilizado pela “Pública” na íntegra, é assinado por um grupo de auditores fiscais da Receita do Estado do Rio de Janeiro que se identifica como Observatório dos Benefícios.
Nele, os auditores fazem coro com o MP (Ministério Público), o Tribunal de Contas e organizações da sociedade civil na demanda por mais transparência e revisão das isenções, intensificadas especialmente a partir do segundo governo de Sérgio Cabral (PMDB).
Segundo o governo do Estado do Rio, o déficit orçamentário em 2016 deve ser de R$ 17,5 bilhões. Diversos fatores confluem para essa diferença entre o que entrou e o que saiu do caixa, como a queda no preço do barril do petróleo.
A dívida do Estado com a União é acusada de ser obscura e de ter juros excessivos. O economista Mauro Osório, coordenador do Observatório de Estudos sobre o Rio de Janeiro, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), aponta ainda “a estrutura produtiva oca” e a “paralisação econômica nacional devido à crise política” como fatores relevantes.
Dentre esses fatores, as isenções se destacam não apenas por ainda serem defendidas pelo governo do Estado do Rio (em outubro, Pezão disse à Federação das Indústrias do Estado que, “enquanto for governador, vou dar incentivo fiscal): elas são apontadas pelo Observatório dos Benefícios como “a principal política tributária nos últimos 15 anos” e não dão sinais de que irão arrefecer.
De 2007 para 2015, as isenções reconhecidas pelo governo saltaram de 13% para 29% da receita do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Mesmo com a crise, em 2017, quando completará uma década no comando do Estado, o governo peemedebista prevê uma renúncia ainda maior que a deste ano, chegando a R$ 9,1 bilhões.
Para o Ministério Público, que investiga “irregularidades no acompanhamento e avaliação dos incentivos fiscais estaduais”, não há dúvidas de que diversas renúncias ilegais de receitas são a principal razão para a crise econômica do governo.
Outros, como o economista Thiago Marques, consultor do Fórum Popular do Orçamento, afirmam que o governo do Estado “confundiu incentivos com benefícios indiscriminados, sem nenhum critério”.
O relatório do Observatório dos Benefícios diz ainda que, devido às isenções, o Tesouro estadual se tornou “dependente dos efeitos anabolizantes das receitas extraordinárias do petróleo e do gás”.
O governo discorda. E as polêmicas começam já nos valores em questão.
Não há dados exatos –apenas aproximações– sobre os benefícios fiscais de ICMS, apesar de este ser a principal receita dos governos estaduais. O sistema oficial para registro dos benefícios (Documento de Utilização de Benefícios de ICMS – DUB-ICMS) é baseado totalmente na autodeclaração dos beneficiados.
O governo estadual não revisa ou fiscaliza as informações.
“É como o Imposto de Renda sem a malha fina. A Receita cruza os dados depois da declaração, o DUB não”, explica o promotor Vinicius Leal Cavalleiro, que move ação civil pública contra o governo do Estado.
“A isenção fiscal é prevista na lei, mas a forma que ela é tratada no Rio de Janeiro é ilegal. E vem causando seríssimas alterações na arrecadação do Estado. Na casa das dezenas de bilhões reais. O que está sendo feito com o erário fluminense por conta da isenção fiscal é um total escárnio”, critica.
Entre 2007 e 2015, foram registrados no DUB-ICMS R$ 185 bilhões em benefícios fiscais. No entanto, segundo a Secretaria de Fazenda, R$ 138 bilhões não significaram uma perda efetiva de arrecadação.
Restariam R$ 47 bilhões que de fato deixaram de entrar para os cofres públicos. A diferença se deve à noção de “renúncia de receita” adotada.
O Executivo recorre ao entendimento da Receita Federal, que exclui casos em que há suspensões temporárias do benefício ou transferência da obrigatoriedade do pagamento do imposto. Já o Tribunal de Contas e o MP citam a Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como outras normas legais com interpretações menos restritivas.
“O MP pontua ainda que, diante da controvérsia, o Estado do Rio de Janeiro “optou por adotar o posicionamento menos protetivo de suas próprias receitas”.
Seja qual for o método, alguns bilhões ainda ficam de fora de ambas as contas. É o caso dos benefícios concedidos para empresas por meio do Fundes (Fundo de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado).
“Seria como o BNDES do Estado. Mas o fundo jamais emprestou nem um centavo a qualquer empresa. Todos os apoios foram feitos por meio de tratamento tributário diferenciado”, explica Cavalleiro.
Quase R$ 20 bilhões no Fundes
Os benefícios via Fundes somaram quase R$ 20 bilhões de 2011 até o ano passado: R$ 2 bilhões a menos que o orçamento da Saúde no período. As estimativas do governo estadual para o total de renúncias, incluindo o Fundes, foi de R$ 7,5 bilhões somente no ano passado.
Em 2016, a previsão foi de R$ 6,8 bilhões, já superando o orçamento da Saúde.
Para o Tribunal de Contas, o número real de isenções pode ser ainda maior que o calculado pelo governo, por causa de benefícios não declarados. “Há a possibilidade de contribuintes não informarem a fruição de benefícios e incentivos fiscais”, destaca o conselheiro José Gomes Graciosa, em um relatório sobre as contas do Estado do Rio de 2015, que a “Pública” disponibiliza na íntegra pela primeira vez.
No parecer, o tribunal aponta falhas metodológicas e outras inconsistências nos dados do DUB-ICMS, como a existência de contribuintes que declaram valores incorretamente.
Exemplo disso pode estar nos dados sobre os maiores beneficiários do ano de 2013, encaminhados pela Secretaria de Fazenda e reproduzido pelo TCE.
Atrás apenas da Petrobras, a vice-campeã de isenções é uma ilustre desconhecida firma de distribuição de equipamentos médicos: a CP-RJ Implantes Especializados, cujos benefícios declarados chegam a R$ 3,85 bilhões. O valor equivale a 73% dos gastos com saúde pelo estado em 2013.
“Muitos Estados do Nordeste concedem até 90% de isenção de alíquota, bem mais do que nós”, diz o secretário de Desenvolvimento Econômico, Energia, Indústria e Serviços do Rio, Marco Capute.
“Muitas vezes ganhamos porque temos um mercado e uma logística melhores. Mas, de resto, é guerra mesmo. Se você não acabar com isso de uma maneira geral, estabelecer uma política geral, você não pode fazer nada.”
Apesar de o Supremo Tribunal Federal considerar inconstitucional a cessão de benefícios fiscais sem aprovação do Confaz, Capute considera o tema um debate em aberto.
“Essa é uma discussão jurídica. Essas políticas foram introduzidas nos Estados há anos. Tem gente que diz que deveria passar pelo Confaz, tem gente que não. Eu advogo que um Estado deveria ter completa liberdade sobre seus impostos”, defende o secretário.
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