Crueldade nos homicídios de pessoas trans indica intolerância e "aviso", dizem especialistas
Era manhã do dia 8 de agosto de 2016 quando a Polícia Militar do Mato Grosso foi acionada e seguiu até a entrada de uma fazenda em Alta Floresta (a 800 km de Cuiabá). Lá encontrava um corpo estirado: era o da travesti Tifanny Rodrigues, 23. Segundo a perícia, antes de ser morta por estrangulamento, ela foi torturada, levou pancadas na cabeça e teve seus órgãos genitais queimados com cigarro.
Tifanny foi uma das 45 transexuais mortas com requintes de crueldade e por meio bárbaro desde janeiro de 2016. Com base em dados da Rede Trans Brasil, o UOL analisou a forma que pessoas trans foram mortas. Das 171 mortes, 45 (ou 26% do total) foram causadas por agressões bárbaras: pauladas, pedradas, mutiladas, estranguladas, queimadas, esquartejadas ou vítimas de agressões físicas até o óbito. A Rede Trans Brasil é uma instituição, com sede no Rio, que monitora a situação de travestis e transexuais no país. Segundo eles, já foram registrados 27 assassinatos de trans no Brasil só este ano. No ano passado, foram 144 casos -recorde de mortes registrados, segundo a rede.
Outro exemplo atual de crimes como este em 2017 é a morte da transsexual Dandara, em Fortaleza, no dia 15 de fevereiro. A princípio, ninguém foi preso. Com a repercussão do caso, graças à divulgação de um vídeo com Dandara sendo torturada, os acusados foram presos 15 dias após o crime.
Das 171 mortes desde janeiro de 2016, 76 foram por arma de fogo. No Brasil, a taxa de mortes por arma de fogo é superior a 70%. No caso da morte envolvendo trans, essas mortes significam 44% - os casos restantes são de crimes com armas brancas, como facas, apedrejamentos ou estrangulamento. Segundo especialistas, isso é indício de que há mais crimes de ódio. Mas o que estaria por trás de tanta violência?
"Os crimes contra a vida dessas pessoas costumam apresentar requintes de crueldade. Quando ocorrem, as agressões costumam ser múltiplas, por meio da utilização de instrumentos que permitem diversas investidas antes da efetiva morte de suas vítimas, sendo tais atos muitas vezes concentrados na região da face e nos órgãos genitais", aponta, em artigo, os pesquisadores Fernando Seffner e Amilton Gustavo da Silva Passos, do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Para o psiquiatra Tadeu Brandão Cavalcante, a violência motivada por questões de gênero "não pode ser equiparada a violência comum". "Há motivações específicas para ela, com base numa sociedade machista, hétero, cisgênera e intolerante com as diferenças", explica.
Para ele, as mortes bárbaras também servem de "aviso de que o próximo pode ser você". "Por isso tendem a ser agressões violentas, emblemáticas, desde a exposição despida na rua, até assassinatos por decapitação, castração, mutilações várias. Se fosse uma vítima hétero, será que haveria todo esse 'ritual'? Não são mortes comuns, são crimes de ódio, são na verdade uma forma de mandar recado", afirma.
"Por que 15 tiros? São crimes praticados com ódio"
"Eu vejo tanto como questão de ódio, como a de tratar como um 'corpo estranho', que precisa ser eliminado. Uma coisa que se percebe nos assassinatos é que quase sempre existe uma ligação com o sexo casual. Há uma relação sexual, às vezes por meio de um pagamento, e --na minha visão-- essa pessoa volta para eliminar esse corpo, apagar a prova", afirma a pesquisadora do tema Sayonara Nogueira, que é coordenadora de comunicação da Rede Trans Brasil e integrante da ONG (Organização Não-Governamental) Transgender Europe.
Nogueira explica que, além das mortes por agressões brutais, há crimes com arma de fogo que explicam o ódio. "Uma trans que morreu ontem [dia 15], na Bahia, levou 15 tiros. Por que 15 tiros? Queriam só matar, por que não deram dois? São crimes praticados com ódio", acredita.
Para ela, a situação das pessoas trans no Brasil só vai mudar se houver mudança cultural com o fim do preconceito e, consequentemente, da exclusão social. "É um segmento que vive um círculo vicioso de exclusão. A trans é expulsa de casa, da escola, não tem mercado de trabalho, não tem geração de renda. E ela vai escolher o quê? A rua! É a rua quem vai acolher ela, e ela vai lidar com todas as questões de vulnerabilidade disso", diz.
"Não somos tão civilizados como se pensa"
"Quando uma pessoa trans é agredida, as demais pessoas acabam endossando isso no seu silêncio. A percepção que tenho é que nossas vidas não valem, não são pra ser vividas, e quando são tiradas de nós -geralmente desses jeitos violentos-, as pessoas cisgêneras acabam aplaudindo e entendendo isso como o melhor. O melhor pra elas e pra sociedade delas", conta a trans carioca e ativista Lana Holanda.
O autor do Mapa da Violência e pesquisador Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Julio Jacobo Waiselfisz, afirma que as mortes desse tipo são classificadas dentro de um grupo de homicídios de proximidade. "Em geral são crimes por motivos fúteis e banais. Essa é a caracterização que se faz", explica.
Ele lembra que o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) fez uma pesquisa, com base nas mortes de 2012, e classificou-as em dois tipos de crime: por motivos fúteis e banais --como problemas no trânsito, por preconceito, brigas de família ou entre vizinhos etc-- e os crimes encomendados praticados por "profissionais da morte".
Ao contrário do que muita gente pensa, os crimes de proximidade são comuns e respondem por maior parte dos homicídios nos Estados. "No Brasil existe um mito de que a maioria dos crimes é feita por criminosos profissionais, mas em realidade temos muito de crimes culturais, vindos de uma cultura da violência na qual se solucione conflito via a eliminação do próximo. Isso inclui o crime de ódio", explica.
Para o pesquisador, não há uma teoria específica sobre "o porquê de um indivíduo mate outro". "Primeiro porque a morte vem desde Caim e Abel aos nossos dias; é uma coisa constante na humanidade. Tem época que se mata mais, época que se mata menos; há certos países que se mata mais, outros menos; isso varia de grupo por grupo. Mas em geral se entende que essa questão está relacionada com a civilização. Civilização significa a capacidade de resolver conflitos de forma normatizada e legal. Enquanto a pré-história tem a marca de que conflito se resolvia com a morte do próximo, a civilização vem para reduzir isso", diz.
Sobre o por que dos altos índices de morte no Brasil --um país de características urbanas e de concentração de crimes em grandes centros--, ele faz uma análise pouco animadora: "Significa que temos muito a avançar no processo civilizatório. Não somos tão civilizados como se pensa".
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