Entre véus, jejum e pudores, mulheres dizem por que escolheram o islã como religião
Ao fundo à direita, lá estão, na área do templo exclusivamente a elas reservada, muitas com os filhos aos pés, ao redor, nos braços. São mulheres islâmicas, com as faces emolduradas ovalmente pelo "hijab", o véu da tradição que recobre seus cabelos e seu colo e que usam "por pudor e respeito".
Envolvem o restante do corpo com trajes típicos sóbrios, ora coloridos, ora monocromáticos e escuros, e estão de pés descalços, conforme as regras para ingresso de todos no interior do templo. O local é forrado por um carpete de um azul vívido e intenso, felpudo e macio ao tato, entrecortado a intervalos regulares, de cerca de um metro, por faixas diagonais brancas que se espicham na direção de Meca, a cidade sagrada para a qual direcionam suas preces.
Estão de pé para mais uma celebração do Ramadã, o mês sagrado de oração e de jejum dos islâmicos em todo o mundo, que se iniciou no último dia 27 de maio. O mês do Ramadã, o nono do calendário lunar árabe, é o mais festejado pelos muçulmanos, uma vez que se trata da comemoração da descida da palavra de Deus do Céu à Terra, ditada pelo anjo Gabriel ao profeta Maomé. Essas palavras foram reunidas no "Alcorão", o livro sagrado dos muçulmanos, a exemplo da "Bíblia" para os judeus e cristãos.
Perto das 17h30, assim que o sol se despedir, será interrompido o jejum ("iftar", em árabe) iniciado antes da alvorada, que proibiu o consumo de alimentos e até mesmo de água, entre outras restrições. O jejum também vale para os filhos em idade da observância religiosa, mas pode excluir pessoas com problemas de saúde, gestantes e lactantes.
Os homens, muitos de barba hirsuta, alguns deles maridos dessas mulheres, ficam separados delas, na parte de frente do templo, junto do xeque, o religioso que comanda em árabe a celebração. Tanto os homens quanto as mulheres, cada um no seu espaço, perfilam-se lado a lado sobre as faixas diagonais brancas do carpete.
Esse cenário, onde fica? Será na cidade de Aleppo, antigo centro financeiro e industrial da Síria, hoje dizimado pela guerra civil que consome o país, com dezenas de milhares de mortos? Bem poderia ser, pois muitas dessas mulheres, seus homens e suas crianças vieram de lá, fugindo dos horrores do conflito.
Mas o cenário é mesmo aqui: a Mesquita Brasil, a mais antiga da América Latina e desde 1929 situada no bairro do Cambuci, região central de São Paulo, junto da ruidosa avenida do Estado, onde caminhões e ônibus bufam e expelem dia e noite grossa fumaça de óleo diesel, irritando olhos e narinas.
As águas escuras do rio Tamanduateí correm tampadas, sob o concreto, oprimidas pelo estreito canal. Acima, os minaretes da mesquita, torres altas e finas, em meio a postes e fios de alta tensão, se esticam tentando no céu agora azul aproximação com Allah. "Allahu akbar", Deus é o maior, conforme a oração.
A barafunda, a confusão do dia, tudo isso ficou lá fora. Aqui dentro há silêncio, um sentimento emoliente de proteção e acolhimento, apesar dos risos e vagidos de crianças, de pés livres dos calçados pisando gostoso a maciez do chão.
Homens tiram, antes da reza, um cochilo, estirados sobre o carpete amigo e felpudo, recostando as cabeças às colunas brancas de capitéis dourados, ou deitados nos sofás da entrada; crianças pequenas correm despreocupadas e soltas pelo interior e recebem os mimos e cuidados das mães. Tudo soa meio familiar.
Ao término da terceira reza (são cinco, todos os dias, e a quarta reza é a que encerrará o dia de jejum durante o Ramadã), o xeque egípcio Abdel Hamid Metwally, presidente do Conselho Supremo de Imãs e Assuntos Islâmicos do Brasil e um dos responsáveis pela condução da Mesquita Brasil, reflete sobre a posição da mulher. "A mulher...", pensa um instante antes de responder, sua alta figura enquadrada pelas colunas brancas e pelo teto de arabescos coloridos.
Com forte sotaque árabe e em português peculiar, trajando tradicional vestimenta escura, sobre a cabeça o branco "taqiyah", um chapéu circular, Metwally frisa a importância feminina citando as últimas palavras proferidas em vida pelo profeta Maomé, base da fé islâmica: "Mohammad deu primeiro conselho sobre reza e, por último, a última palavra, falou: 'Trate bem para a mulher'. Reza: coluna da religião. Mulher: coluna da vida". De acordo com o xeque, "onde tem 'trate bem para a mulher' tem povo forte, sucesso para nossos filhos".
'Desisti de usar o véu por segurança'
Uma das primeiras a chegar para a cerimônia que marca o encerramento do jejum diário é brasileira: a atendente Renata Rosa, 37. Veio da rua propositalmente sem o "hijab" por nutrir certo temor da reação da sociedade em que vive, quase exclusivamente cristã.
Segundo o Censo 2010 do IBGE, há cerca de 35 mil muçulmanos morando no país, entre eles apenas 14 mil mulheres, ao passo que há, só de católicos apostólicos romanos, 123 milhões de habitantes. Os muçulmanos representam, portanto, apenas 0,02% da população residente. Na comparação com o Censo anterior, entretanto, quando havia 27 mil muçulmanos no Brasil, o islamismo avançou cerca de 30%.
"Desisti de usar o véu lá fora mais por questões de segurança", diz Renata, enquanto se arruma para a reza, colocando seu "hijab". "Já ouvi casos de pessoas que sofreram agressões, a gente vê também na mídia. De certa forma, existe muito preconceito [contra os muçulmanos]. E a minha religião é uma coisa minha, ninguém precisa saber", justifica.
Renata faz aniversário no dia de nossa visita e diz que se converteu ao islamismo há um ano e meio (reversão é o termo usado para designar a adoção formal dessa religião por muçulmanos não natos e sem ascendência árabe).
"Fui me encontrando [no islamismo], as ideias batiam", explica. Começou pelo interesse em aprender a língua árabe e daí evoluiu para os estudos de teologia, sem ter sido para isso incentivada ou orientada por ninguém.
De família católica com muitos filhos (ela tem quatro irmãos e duas irmãs), conta que a mãe, a princípio, se posicionou contra, mas foi aceitando conforme a filha ia apresentando seus argumentos.
"A religião islâmica me ajudou a encarar a vida de uma forma diferente, mais positiva, mais otimista. Antes focava muito em problemas, mas agora não mais. Sinto uma paz interior muito grande e sou mais confiante. Buscar a Deus fornece paz interior", descreve ela, que é mãe de um garoto de 12 anos.
Questionada sobre a relação do islamismo com a mulher, ela assume seu preconceito, pois via submissão e opressão, atitude que rejeitou com a prática e o conhecimento. "Ambos, homens e mulheres, são importantes, com papéis diferentes e cada um com sua importância. O islamismo é para todo mundo."
Contra o preconceito, Renata sugere que as pessoas busquem fontes confiáveis de informação. "Não dê 'copia e cola' no que a mídia lança sem refletir a respeito. A mídia não é instrutiva em muitos casos. Não alimente uma rede de informação que não é correta."
Exemplifica com a base comum que há entre as religiões. "Como os cristãos e os judeus, nós acreditamos no Deus único. Temos o mesmo Deus, que só muda de nome de acordo com o idioma." Diz que Allah é só Deus em árabe, não outro Deus. "E a gente não é melhor do que ninguém. Aquele que se acha superior julga de forma equivocada."
Baraka Ibrahim Arafat, egípcia do Cairo, há dez anos no Brasil e casada com o xeque Metwally, assevera que a mulher "é a primeira coisa" no islamismo. "É tranquilo, temos liberdade, podemos trabalhar, estudar, sair quando quiser, e nada é obrigatório, nem o 'hijab'."
Baraka, que só tira o véu quando está em casa, vê boa aceitação das muçulmanas no Brasil: "As brasileiras, quando veem o nosso véu, querem fazer igual", sorri, através da vestimenta de tons azuis com figuras geométricas multicoloridas que a cobre parcialmente. "O homem tem de cuidar muito bem da mulher."
Ensina que é dever tanto da mulher quanto do homem islâmico preservarem a fidelidade um ao outro. "E o homem não deve ser fiel a sua mulher porque tem medo de que ela o flagre [e faz o gesto de quem olha colocando a mão sobre o olho], mas porque o homem é temente a Deus."
'Aqui a cultura é diferente, mas é bom'
Para a síria Nisreen Zahloul, de "hijab" branco, natural de Aleppo e há um ano e três meses no Brasil, o islamismo "é a melhor religião". "Ajuda as pessoas, respeita os outros e defende o diálogo."
Na Síria, Nisreen trabalhava como professora de matemática, ajudando a formar novos engenheiros. Perdeu o marido durante a guerra civil e hoje é casada com o cunhado. Diz, num português incipiente, que ainda está estudando, hoje ter clientes "pequeninos" para guloseimas árabes que prepara, parte da renda para manter os quatro filhos.
"Aqui a cultura é diferente, mas é bom. Tenho amigas brasileiras que me ajudam muito." E planeja um dia voltar à terra natal, "depois da guerra".
A artista plástica Nema Khaled, há dois anos no Brasil com o marido e os cinco filhos, vindos também de Aleppo, ostenta orgulhosamente o seu "hijab" preto, contrastando com a jaqueta "jeans". Ela diz se sentir com "mais liberdade" com ele.
Para Nema, o "hijab" garante também que um homem não vá se interessar por uma mulher só por causa da beleza dela, mas também por suas virtudes morais e inteligência. A mulher identifica ainda o caráter de exclusividade que a vestimenta oferece: "Só para o marido dela é que mostra o corpo dela por inteiro. Tem mais respeito".
No Brasil, tem sido chamada, por seu talento artístico, a pintar arabescos e inscrições árabes no interior de templos islâmicos. Também tem pintado pessoas, gosta sobretudo do mar e sonha com o dia em que poderá conhecer praias brasileiras e pintá-las. "A distância entre São Paulo e Santos [litoral sul paulista] é mais ou menos a distância de Aleppo para o mar", compara.
A família de Nema tinha posses em Aleppo, e o marido atuava como juiz. Aqui, ele tenta recuperar o trabalho, mas tudo ficou muito mais modesto. E a vida, para eles, só se mostrou possível com a rede de solidariedade da mesquita e da identidade comum com as outras famílias de Aleppo. "Foi tudo muito triste o que aconteceu na Síria", lamenta a filha Rama Kabawa, de olhos negros e sobrancelhas arqueadas marcadas, que não quer trajar o "hijab" e está no nono ano do ensino fundamental de uma escola adventista. "Nossa vida era VIP."
'Se fossem muçulmanos de verdade, não fariam isso'
A egípcia Jade Rebeca, que está há mais de 20 anos no Brasil e trabalha com vendas e direito, disse ter adquirido o hábito de só usar o "hijab" na mesquita por já ter sido "destratada" nas ruas.
Mas a bronca maior dela é com alguns homens islâmicos no trato das mulheres. Para Jade, muitas já sofreram e sofrem desfeitas e maus-tratos. E exemplifica com a própria vida, com um acontecimento do Ramadã deste ano, quando foi proibida de entrar na mesquita de Santo Amaro, na zona sul, por ter jogado fora "uma colherzinha de grão de bico". "Na verdade, foi por causa da minha cor", diz, entremostrando o rosto moreno. "A comida foi só um pretexto. Desde que entrei lá eles me perseguem. Esses homens, todos brancos, se dizem muçulmanos, mas, se fossem muçulmanos de verdade, não fariam isso."
No interior da mesquita, as mulheres oram. Erguem-se, sentam-se, recurvam-se, genuflexas, tocam as frontes no chão, erguendo os quadris. Dizem que é por isso que ficam ao fundo da mesquita, por pudor, para evitar ângulos indecorosos para uma mulher em público.
A breve oração termina, dá-se o sinal do fim do jejum. As mulheres então se aglomeram junto a uma mesa colocada na entrada do templo, onde há jarras com água fresca e tâmaras secas. Bebem e comem alegremente, pela primeira vez desde a manhã.
No largo salão no prédio contíguo à mesquita, o jantar começa a ser servido. É gratuito, como parte da caridade islâmica durante o Ramadã. As mulheres têm preferência. Os homens, quase todos estrangeiros, muitos deles negros, vindos da África (Nigéria, Gana), aguardam na fila. Há salada, quibe de forno com molho de coalhada, arroz branco, frango com molho e legumes, macarrão, suco, fruta. Os pratos vão ganhar o tamanho da fome: enormes.
Ainda haverá nesta noite a última oração. Corpos resserenados depois da refeição, acompanham todos os comandos de voz do xeque ao microfone, para repetir orações em árabe.
Carros estacionam à saída da mesquita, alguns vão embora a pé, baforando um cigarro. Mulheres com véus empurram carrinhos de bebê e vão conversando com seus maridos. Nisreen tem o semblante cansado enquanto conduz os quatro filhos pela mão. Termina um dia de Ramadã numa mesquita brasileira. Antes de a bola dourada subir ao céu, estarão de pé outra vez.
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