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Inspeção em comunidades terapêuticas de 11 estados revela tortura, sequestro e cárcere privado

Terapia laboral é adotada em comunidades terapêuticas; relatório do MPF vê problemas na prática forçada - Arte UOL
Terapia laboral é adotada em comunidades terapêuticas; relatório do MPF vê problemas na prática forçada Imagem: Arte UOL

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

19/06/2018 18h01

Inspeções realizadas desde o final do ano passado em comunidades terapêuticas voltadas ao tratamento de dependentes químicos revelaram uma série de violações aos direitos humanos camufladas como ações de tratamento do paciente. Essas entidades, de natureza privada, baseiam seus tratamentos em abstinência das drogas e práticas espirituais.

A constatação é de um relatório divulgado nesta semana pelo MPF (Ministério Público Federal), que, por meio da PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), realizou as inspeções juntamente com o CFP (Conselho Federal de Psicologia) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos.

A coleta de informações envolveu avaliação dos espaços físicos, entrevistas com usuários, direção e equipes de trabalho, além da análise de documentos das instituições – voltadas especialmente à internação de usuários de drogas.

Ao todo, foram inspecionadas 28 comunidades terapêuticas de 11 estados em todas as cinco regiões brasileiras: Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco (Nordeste); Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (Sudeste); Santa Catarina (Sul); Distrito Federal, Mato Grosso e Goiás (Centro-Oeste) e Rondônia e Pará (Norte). A amostra representa cerca de 1,5% das quase 2 mil comunidades terapêuticas que há hoje no Brasil.

A série de inspeções teve início em outubro do ano passado e foi desenvolvida em meio ao anúncio do governo federal, conforme revelou reportagem do UOL, à época, de aumentar em mais de 150%, a partir deste ano, o repasse de verba pública a comunidades terapêuticas focadas em dependentes químicos. Do total de 28 comunidades terapêuticas inspecionadas, 18 informaram receber algum tipo de recurso ou doação de órgãos públicos nas esferas municipal, estadual ou federal.

Para a Febract (Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas), a amostra analisada na inspeção é "absurdamente pequena" e diz respeito não a comunidades, mas a “clínicas clandestinas, não regulamentadas” --por essa razão, não corresponderia à realidade desse tipo de tratamento.

Situação análoga a escravidão e tortura

Entre as violações apontadas no relatório divulgado nessa segunda-feira (18), estão práticas de trabalho forçado e de situações análogas a escravidão disfarçadas de laborterapia – ou seja, a cura por meio do trabalho. Em alguns casos, assinalou o relatório, a laborterapia foi utilizada como ferramenta de disciplina e de correção moral –o que é condenado pelos princípios da reforma psiquiátrica estabelecida no Brasil pela Lei nº 10.216/2001. A mão de obra de internos costuma ser usada para serviços de limpeza, preparação de alimentos, manutenção, vigilância e, em alguns casos, até mesmo no controle e aplicação de medicamentos a outros internos.

Foram encontrados também casos de cárcere privado, punições e indícios de tortura em 16 dos locais inspecionados. Entre as sanções, havia desde a obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas à perda de refeições e violência física.

As situações de cárcere privado apontadas no documento foram observadas a partir das dificuldades de acesso dos internos ao ambiente externo –seja pelo afastamento de centros urbanos e de serviços públicos, ou por barreias impostas no contato com a família.

Em uma comunidade de Paudalho (PE), por exemplo, o relatório apontou que, além de ela estar em “área afastada, de difícil acesso, por estrada de barro, numa região de mata atlântica, sem placas indicativas que facilitem a chegada ao local”, também chamou atenção da equipe “a altura dos muros (aproximadamente 5 m, lembrando instituições carcerárias), com cerca elétrica e arame farpado do tipo ‘concertina’ enrolando os postes de eletricidade na altura do muro, provavelmente, para evitar fugas.”

Isolamento por longos períodos, privação de sono, supressão de alimentação e uso irregular de contenção mecânica (amarras) ou química (medicamentos), caracterizadas como práticas de tortura e tratamento cruel ou degradante, de acordo com a legislação brasileira, também constam do relatório.

Sequestro e internação de adolescentes

Conforme o documento, as inspeções mostraram ainda que algumas comunidades terapêuticas adotam o “resgate” ou “remoção”, ação que consiste no internamento forçado por meio de uma equipe que vai à residência da pessoa e a imobiliza, com uso de força física ou de contenção por medicamentos. “Em algumas das unidades, foi informada a participação de outros internos na realização desse serviço, que está disponível em pelo menos nove das 28 instituições visitadas”, apontou o relatório.

“A prática viola a determinação legal sobre a necessidade de laudo médico fruto de avaliação prévia e pode, inclusive, configurar crime de sequestro e cárcere privado qualificado, conforme o artigo 148 do Código Penal”, completa o texto.

As inspeções também identificaram a internação de adolescentes em comunidades terapêuticas –casos de 11 e de 13 anos, por exemplo, internados mediante decisão judicial e em locais voltados à internação de adultos. A prática, aponta o MPF, afronta diretrizes de proteção estabelecidas pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Outra situação verificada em 16 das 28 unidades inspecionadas foi a violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual.

Procuradora quer ação no STF e no MPF

De acordo com a procuradora da República Deborah Duprat, coordenadora da PFDC, violações pontuais identificadas na inspeção já foram comunicadas a autoridades competentes de cada caso, como a de adolescentes internados com adultos, para que medidas fossem adotadas.

Segundo a procuradora, um conjunto maior de ações será proposto ao STF (Supremo Tribunal Federal) e à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a fim de que se definam critérios para o financiamento público desse tipo de serviço.

“É importante dizer que há instituições boas – mas essas só podem ser as que estão inseridas na RAPS [Rede de Atenção Psico-Social], pois seguem a ideologia da lei da reforma psiquiátrica. Das que vistoriamos, nenhuma está inserida”, afirmou a procuradora. A escolha das comunidades, explicou, foi feita com base nos agentes que compuseram a ação nos estados –MPF e CFP.

“Para hipóteses de internações involuntárias, compulsórias, vamos nos reunir com procuradores da República e fazer um levantamento por estado de todas as instituições que recebem financiamento público. Isso vai compor, na sequência, uma representação à procuradora Raquel Dodge”, disse. “Pelos casos todos que vimos, a impressão que fica é que a gente pode estar internando simplesmente as ‘pessoas indesejáveis’, não que de fato precisem de tratamento”, criticou.

Inspeção ocorreu em “clínicas clandestinas”, reage federação

O relatório divulgado pelo MPF e pelo CFP gerou críticas por parte da Febract (Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas), entidade que representa cerca de 300 comunidades terapêuticas em todo o Brasil. Só no estado de São Paulo, são 68 associadas e que integram o Recomeço, programa do governo paulista voltado a dependentes químicos.

Na avaliação do gestor-geral da entidade, o psicólogo Pablo Kurlander, a amostra escolhida “é absurdamente pequena para um relatório que se pretende de abrangência nacional”.

“Já existe um marco regulatório sobre as comunidades terapêuticas, e, nele, se estabelece que não haja a internação compulsória. A grande maioria do que se inspecionou não foram comunidades terapêuticas, mas clínicas clandestinas, sem regulamentação –e isso também combatemos, não concordamos com essas práticas, tanto que a maior parte das comunidades que nos são associadas estão, cada vez mais, em áreas urbanas ou próximas do ambiente urbano”, salientou.

Kurlander afirmou ainda que o setor debate, atualmente, justamente a definição de regras que componham um roteiro de fiscalização a esse tipo de atendimento.

“Conseguimos em março passado, no TRF [Tribunal Regional Federal] em São Paulo, a revalidação do marco regulatório, que estava suspenso desde 2016, sob a alegação do MPF de que não havia fiscalização dessas comunidades. Inúmeras vezes tentamos discutir isso, mas o problema é que órgãos que nos criticam não querem participar dessa ação”, afirmou.