''Loba do Tinder'': investigação revela história de falsa riqueza, ameaças e extorsão
Patrícia Coutinho tem 29 anos. Pelo fato de apresentar-se de maneiras diferentes, a mineira pode ter dois cursos superiores e pós-graduação na USP (Universidade de São Paulo), ser advogada, administradora, empresária, ex-servidora pública, esteticista, modelo, musa fitness ou garota de programa --sua ocupação depende de quem conta a história.
Há, no entanto, elementos repetidos. Patrícia sempre dizia ser rica. E os homens com quem se relacionava --que, via de regra, a conheciam no aplicativo de relacionamentos Tinder-- afirmam ter sido vítimas de golpes financeiros aplicados por ela.
No começo de novembro, após ser detida em São Sebastião (DF), Patrícia ganhou o noticiário nacional como a "Loba do Tinder". "Ela identificava o ponto fraco das pessoas, alguma fragilidade, e assim conseguia enganar as vítimas. As redes sociais facilitaram muito nossas vidas, em diversos aspectos, mas também ajudam na atuação de criminosos e pessoas de má índole", afirmou o delegado João de Ataliba, da 1º Delegacia de Polícia Civil do Distrito Federal, responsável pelas investigações.
Segundo ele, Patrícia agia basicamente de três maneiras para obter ganhos financeiros.
- Quando não havia envolvimento amoroso, ela prometia conseguir com sua influência um ótimo emprego à pessoa --para isso, pedia adiantamento de taxas;
- Aos parceiros, dizia que receberia um bônus ou que seu dinheiro estava aplicado e sugeria, usando variados motivos, que lhe fizessem empréstimos a curto prazo;
- Se a pessoa fosse casada, ameaçava expor a relação nas redes sociais, procurar familiares e processar por danos morais. "Muita gente não deve ter procurado a polícia para não acabar o casamento. Pagou R$ 1.000 para ela e achou que saiu no lucro", disse Ataliba.
A investigação está em curso e depende da perícia a ser feita no telefone celular de Patrícia, apreendido pelo delegado em meados do ano passado. A partir das conversas, fotos, vídeos e outros dados obtidos no aparelho, será possível especificar um número de vítimas e determinar os crimes pelos quais a mulher --hoje presa na Penitenciária Feminina do Distrito Federal-- responderá. O delegado identificou casos de estelionato, extorsão e difamação, mas é preciso determinar as vítimas de cada um desses crimes.
Patrícia estava foragida desde maio e foi presa em São Paulo depois de uma denúncia anônima. Segundo o delegado, sua prisão permite que a investigação seja agora tratada como prioridade, inclusive dando agilidade à perícia. A detenção, no entanto, não tem a ver com as possíveis fraudes, mas sim com denúncias falsas feitas por ela no Distrito Federal --por conta disso, foi condenada a três anos e seis meses de prisão, a serem cumpridos em regime semiaberto caso comprove emprego fixo.
Na quarta-feira (14), a reportagem tentou repetidas vezes, sem sucesso, contato em dois telefones registrados na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) como sendo da advogada de Patrícia.
O que ele diz: riqueza e extorsão
Para entender o que levou Patrícia à prisão, é preciso voltar ao final de 2016, quando ela conheceu o servidor público André* pelo aplicativo de relacionamentos Tinder. Os dois, que moravam no Distrito Federal, se relacionaram até abril de 2017, por seis meses, período em que ele diz ter entregue a ela cerca de R$ 15 mil em espécie e 35 transferências que totalizaram R$ 32,7 mil (os depósitos, como mostram os comprovantes, eram feitos na conta de Alexandre*, que será apresentado mais à frente).
No inquérito contra Patrícia, André afirmou que estava se separando e fragilizado quando a conheceu. Na ocasião, não contou sobre o processo de separação. Ela dizia ter dinheiro e lhe presenteou com perfume e peças de roupa, além de lhe oferecer um procedimento estético (a ser feito por ela mesma). Afirmava que poderia lhe ajudar na compra de um novo apartamento, de um carro e chegou a lhe dizer para ir até uma loja da Apple e escolher os eletrônicos que quisesse, pois ela pagaria por eles.
Segundo André, a mulher dizia que estava aguardando o pagamento de um bônus e na iminência de fechar diversos negócios --ela enviava fotos mostrando as vultuosas quantias a receber. Até que isso acontecesse, no entanto, pedia valores emprestados e dizia que pagaria de volta em breve. Parte desses montantes seria também para comprar remédios importados, com os quais faria o procedimento estético no então namorado.
Para André, o relacionamento começou a desandar quando Patrícia passou a postar fotos dele em suas redes sociais –exposição da qual ele afirma não gostar. Com a relação desgastada, ele disse ter tentado terminar e Patrícia mostrou-se mais agressiva: dizia que ele tinha acabado com sua vida, que iria se suicidar e passou a cobrar mais dinheiro --R$ 7.000, que teria sido o valor gasto com as roupas presenteadas. Por isso, ele se considera vítima de extorsão.
Na montagem abaixo, exemplos de conversas reais com cobranças e ameaças:
Diante das negativas, a mulher passou a fazer contato com parentes de André e também com colegas de trabalho, segundo ele, com o intuito de difamá-lo. As ameaças passavam pela divulgação de fotos comprometedoras, como uma em que ele aparecia de cueca (e, segundo ele, foi mesmo compartilhada).
Ao buscar informações sobre a mulher, descobriu processos anteriores em que ela respondia por ameaça e também um boletim de ocorrência por estelionato. Em contato com outras vítimas --inclusive Alexandre, aquele que recebia os depósitos--, descobriu que Patrícia sempre se apresentava como uma mulher rica, contando a mesma história sobre a necessidade pontual de empréstimos. Quando confrontada, ameaçava expor os homens.
O que ela diz: presentes e decepção
Nas cópias de depoimentos à polícia e à Justiça, aparecem, na versão de Patrícia, a mesma história sobre os dois terem se conhecido no Tinder. Afirmou não trabalhar, morar em um hotel em Brasília e viver da mesada de R$ 7.000 de seu pai --uma funcionária do hotel informou ao UOL que Patrícia não mora há cerca de um ano no local, onde ficou devendo pagamento.
Sobre as quantias transferidas por André, disse que pediu empréstimo para comprar uma passagem de Minas Gerais a Brasília, pois seu cartão não estava funcionando. Também mencionou cerca de R$ 5.000 para o pagamento do remédio para tratamento facial em um depoimento e, em outro, falou que cada unidade custava R$ 4.000, sendo que precisava de seis delas. Ela disse que quis lhe entregar o produto já comprado, mesmo após o término, mas ele não aceitou. E não especificou outros pagamentos feitos pelo ex-namorado: disse que André costumava presenteá-la com dinheiro e com transferências bancárias.
Ainda na versão dela, o relacionamento entrou em crise quando Patrícia descobriu que ele estava se separando --informação desconhecida até então. Em depoimento, afirmou ter chorado "de domingo a terça, como uma louca". Ela nega que tenha extorquido o ex, dizendo que pedia apenas para ele devolver as roupas presenteadas (segundo ela, porque ele "andava onça com onça, combinando nada"). Também nega qualquer ameaça, porque "era cega de amor por ele".
Patrícia admite, no entanto, ter postado fotos, filmes e mensagens para difamar André, alegando que, antes, ele criou um perfil falso no Facebook, adicionando os amigos dela para difamá-la. Ao contrário do que afirmou a secretária do ex em depoimento ("frequentes ligações telefônicas" e "ameaças de fazer escândalo"), Patrícia contou que telefonou ao trabalho de André para informar ao departamento de recursos humanos que ele tomava medicação controlada.
Também disse ter sido xingada no Facebook pela irmã do ex. E relatou ter descoberto "um tanto de coisa" ao colocar o dedo de André no iPhone dele (desbloqueando o acesso): que tinha enganado mais sete mulheres. Ela não apresentou provas de suas declarações, explicando que não tinha acesso ao seu próprio telefone, apreendido pelo delegado Ataliba.
O que a Justiça diz: falsa acusação e prisão
Em junho de 2017, depois de André abrir processo contra Patrícia (por ameaça, constrangimento e fraude), ela deu queixa dizendo que foi ameaçada pelo ex-namorado. Primeiro, mencionou o mês de março, depois maio. Na ocasião, ele teria se aproximado dela de carro e dito: "Se você fizer algo contra mim, eu te mato. Ou melhor, eu mando te matar".
Em 18 de junho, a Justiça concedeu medidas protetivas, impedindo André de se aproximar de Patrícia ou manter com ela qualquer tipo de contato.
Após investigação do caso, no entanto, o Ministério Público ofereceu denúncia contra Patrícia por crime previsto no artigo 339: "Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente". Pelo entendimento da Justiça, ela fez uma falsa acusação e, por isso, foi condenada.
O mandado de prisão foi expedido em maio de 2018 e, desde então, ela era considerada foragida.
Transferências, depósitos e saques
Além de André, a investigação passará por outros casos já relatados nos processos e inquéritos. Há ainda mais possíveis vítimas a serem identificadas pela perícia do celular. É improvável que essas pessoas sejam ressarcidas, mas suas histórias podem ser importantes para novas condenações da suspeita --ela responderá criminalmente por cada vítima, aumentando assim o tempo de pena.
O boletim de ocorrência acusando a mulher de estelionato foi feito por Roberto*, que a conheceu no Tinder em junho de 2016, mantendo um relacionamento de três meses. Segundo ele, Patrícia se ofereceu para ajudar no processo de separação dele, dando andamento na partilha de bens do casal. Cobrou diversas quantias em dinheiro, diversas vezes, que totalizaram R$ 10 mil.
Sem informações sobre o tal processo, Roberto começou a desconfiar de Patrícia. Pediu provas, não obteve respostas. Buscas na internet não a relacionavam com quem ela dizia ser. Ele disse ter rompido o relacionamento e, então, abriu o boletim de ocorrência. Nos depoimentos de Patrícia, ela confirmou a relação, mas negou ter dito que era advogada e se oferecido para acompanhar o processo.
Alexandre, que recebia os depósitos de André, também conheceu Patrícia via Tinder. Os dois negam que tiveram um relacionamento amoroso, e ele diz que a mulher prometeu ajudar com uma vaga de emprego na empresa do pai dela. O salário era de R$ 59 mil. Para agilizar o trâmite, a herdeira pedia os chamados "códigos", ou transferências em dinheiro, que somaram cerca de R$ 15 mil. Ela também pedia dinheiro emprestado, que Alexandre não teria dado, e crédito para o celular.
Em sua conta no Banco do Brasil, Alexandre passou a receber dinheiro de André --com quem sabia que Patrícia mantinha um relacionamento amoroso. Ela mostrava as mensagens trocadas entre os dois e, numa delas, acabou mandando o número do então namorado. Desconfiado sobre as transações, Alexandre telefonou a André, que disse ter feito as transferências para a compra de um carro (em seu entendimento, o automóvel seria retirado no CNPJ de uma empresa ligada a Patrícia, da qual André era advogado).
Alexandre não é considerado um comparsa nas investigações. Segundo Ataliba, os dois ficaram amigos e Patrícia ganhou a confiança dele, que recebia as transferências e fazia saques para ela no intuito de ajudar. Patrícia confirmou conhecer Alexandre, mas negou ter lhe oferecido um emprego e pedido dinheiro. Disse ainda que as transferências de André (aqueles supostos "agrados" do então namorado) iam para a conta do advogado e amigo, pois os dois eram clientes do mesmo banco.
Ajuda profissional para garota de programa e cabeleireira
Há outras duas testemunhas, mulheres, que disseram ter tido experiências de fraude com Patrícia --nenhuma das situações foi comentada pela acusada em seus depoimentos.
Uma delas, uma garota de programa que a conheceu em um grupo de Facebook, para quem a mineira também dizia ser garota de programa. Patrícia contou que as oportunidades eram melhores em Brasília do que em São Paulo, e a mulher acabou viajando até lá para passar 15 dias. Nesse período, recebeu promessas de Patrícia (um implante de silicone, uma viagem, um emprego) e acabou fazendo depósitos à "amiga". Ao perceber os golpes, conversou com outras vítimas e acabou prestando depoimento na delegacia.
A outra é uma cabelereira, que foi atendê-la no hotel onde Patrícia morava, levando produtos que vendia (lingeries e relógios). Patrícia comprou alguns itens e prometeu pagá-la depois, o que acabou nunca fazendo. A cliente também ofereceu um emprego à cabeleireira, na empresa de seu pai, e pediu por telefone R$ 650 para agilizar os trâmites. A mulher disse que não queria, ouviu que não daria para voltar atrás, mas mesmo assim se manteve firme, fora do golpe.
Nessa história, há ainda dois possíveis comparsas, que, segundo a polícia, serão investigados. Um deles, com passagem pela polícia, se passava por pai de Patrícia, enviando mensagens de áudio às vítimas para que pagassem as quantias impostas. Já a outra, uma mulher, foi à casa de André duas vezes buscar dinheiro em espécie a mando da suspeita.
A pedido da reportagem, o delegado deu dicas para evitar que se caia em golpes desse tipo.
Ao se envolver com alguém por redes sociais, procure também conhecer a pessoa fora do ambiente virtual, descobrindo onde trabalha, conhecendo seus amigos. Tenha sempre um pé atrás e não empreste dinheiro para quem você não conhece. Os golpes podem ser aplicados por diferentes tipos de pessoas, homens e mulheres.
Segundo Ataliba, Patrícia também se relacionava amorosamente com mulheres e há algumas delas entre suas vítimas.
*Os nomes foram alterados para preservar as identidades
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