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Motorista de app se nega a levar surfista cego por estar com cão-guia

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, de Porto Alegre (RS)*

23/11/2019 13h50Atualizada em 25/11/2019 09h31

Um surfista profissional de 27 anos foi impedido de seguir viagem em um carro de aplicativo por estar com o cão-guia. O caso aconteceu na última quarta-feira (20) em Florianópolis (SC).

O surfista Derek Rabelo estava acompanhado da esposa de 27 anos, grávida de nove meses, e da cão-guia Serena, de três anos. Em um vídeo, gravado pela esposa do surfista, a motorista pede inicialmente para que eles "se retirem" do carro pois precisava continuar trabalhando. Na gravação, o surfista está no banco da frente com a cão-guia, sentada no assoalho do veículo. Já a esposa de Rabelo está no banco de trás. Em nota, a Uber lamentou a situação e informou que a motorista foi suspensa (veja a nota abaixo).

O surfista questiona a condutora de não querer continuar a viagem. "Porque eu não levo cachorro no meu carro", disse a mulher.

Rabelo explica que o animal é um cão-guia, mas a motorista retruca que o casal deveria colocar essa informação na hora de chamar a corrida. Em seguida, o surfista liga para a polícia e informa para a condutora que o casal só vai deixar o veículo após os PMs chegarem. A motorista começa a ficar irritada. "Eu não vou esperar a polícia chegar. Eu não sou obrigada".

Uma pessoa que estava na calçada se aproxima do carro e a condutora começa a dar explicações para ela. "Eu nunca vi isso na minha vida, ele quer me obrigar a levar um cachorro dentro, e eu não vou levar", disse a mulher, interrompida por Rabelo que explica novamente que o animal é um cão-guia. "Mas eu não vou levar. Eu não posso, eu não sou obrigada. A pessoa entra em seu carro e diz que só vai sair com a polícia, isso não existe", rebate a mulher.

O surfista reforça que tem a documentação do animal e que há legislação específica para o transporte de cão-guia. A motorista deixa o carro e, enquanto isso, o surfista explica em inglês para a esposa, que é alemã, para não sair do veículo. Além disso, diz que está tranquilo, controlado e está sendo educado. A condutora dá a volta no carro e para ao lado do surfista.

"O problema é que a senhora não quer nem ouvir. Você está causando um problema para você mesmo. Pela lei a senhora é obrigada a me levar. Desculpa, mas eu tenho pena da senhora. Todos os Ubers que passaram por isso com meus amigos e comigo mesmo foram banidos da plataforma. Pela lei aqui, eu preciso esperar a polícia chegar para registrar isso."

Ainda fora do carro, a motorista negou que tenha pedido para o casal sair do veículo. "Hora nenhuma eu mandei vocês se retirarem do carro", disse. Rabelo rebate: "Mandou sim, está filmado minha filha." Logo após, o surfista afirma que a conduta está sendo preconceituosa. Ela nega e pergunta o que ele está ganhando com isso. "Honra, dignidade, que nós não temos. Vocês estão se negando a levar deficiente visual." O vídeo termina com a chegada da polícia e a saída do casal do interior do carro.

Ao UOL, o surfista disse que se sentiu "discriminado" pela motorista, mas que essa não foi a primeira vez. "Foram pelo menos duas ou três ocasiões, mas eu nunca denunciei, porque eu não gosto de estresse. A gente quer trazer isso à tona para isso mudar", observou. Segundo Rabelo, a cão-guia Serena está sempre limpa e bem cuidada. Naquele dia, o casal deixou para manutenção o seu veículo em uma oficina mecânica. Para voltar para casa, na Zona Sul de Florianópolis, a esposa chamou o carro pelo aplicativo. Derek e a esposa moram há pouco mais de um ano em Florianópolis, antes residiram seis anos no Exterior.

O que diz a legislação

Há duas legislações que tratam sobre o assunto. A lei federal 11.126, de junho de 2006, assegura a pessoa com deficiência visual acompanhada de cão-guia o direito de ingressar e de permanecer com o animal em todos os meios de transporte e em estabelecimentos abertos ao público, de uso público e privados de uso coletivo. A garantia é aplicada "a todas as modalidades e jurisdições do serviço de transporte coletivo de passageiros, inclusive em esfera internacional com origem no território brasileiro". A legislação observa que se configura discriminação "qualquer tentativa voltada a impedir ou dificultar" o acesso de pessoas com deficiência visual acompanhadas de cão-guia aos meios de transporte. Caso ocorra, pode ocasionar interdição e multa.

Além disso, o decreto 5.904, de setembro e 2006, regulamenta a lei anterior e reforça que "a pessoa com deficiência visual usuária de cão-guia tem o direito de ingressar e permanecer com o animal em todos os locais públicos ou privados de uso coletivo". O decreto fixa multa de R$ 1 mil a R$ 30 mil caso se impeça ou dificulte o ingresso e a permanência do usuário com o cão-guia nesses locais.

O que diz a Uber e a motorista

Em depoimento à polícia, a motorista disse que a corrida foi chamada pela esposa de Rabelo e que, quando chegou ao local, assustou-se quando Derek entrou no veículo com o cão-guia. Disse que tem medo de cachorro, pois tem trauma de quando foi mordida. A condutora ainda afirmou que o surfista começou a dizer que tinha o direito garantido por lei de levar o cachorro, sem avisar que era deficiente visual. A motorista ainda disse que depois de esclarecer a situação, concordou em levá-los, mas Rabelo teria se recusado, alegando que só sairia do local com a presença de policiais.

Em nota, a Uber lamentou a situação e informou que a empresa tem como política que os motoristas parceiros cumpram a lei e acomodem cães-guia.

"Tomamos as medidas necessárias para a suspensão da motorista citada. A Uber reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e inclusão para todas as pessoas que utilizam o nosso app", salientou a empresa por nota. A Uber acrescentou que a violação por um motorista parceira das leis que regulam o transporte de passageiros com deficiência, inclusive quanto ao uso de animais de serviço, constitui um descumprimento dos termos de uso da plataforma acordado entre as partes. "Qualquer denúncia de discriminação resultará na desativação temporária da conta, enquanto a Uber analisa o incidente. Denúncias confirmadas de discriminação relativas à violação de lei relacionada ao transporte de passageiros com deficiência poderá resultar na perda permanente do direito de acesso à plataforma Uber", salientou a empresa.

* Colaborou Debora Luvizotto, do UOL, em São Paulo