Sem sobrenome, mãe e filha vivem saga por direitos e adoção em Fortaleza
Aos 18 anos, Raquel aprendeu a conviver com uma pergunta sem resposta: "Qual o seu sobrenome?". Mais do que um constrangimento por não saber como responder, ela perdeu direitos fundamentais.
Conta, por exemplo, que, desde pequena, vive uma saga para conseguir acesso a serviços essenciais, como emitir documentos de identificação ou usar o SUS (Sistema Único de Saúde).
Raquel foi registrada de forma tardia, com apenas o primeiro nome. Hoje, tem uma filha, chamada Raquelly, de três anos. Como ela, a menina enfrenta o problema da falta de sobrenome, porque o pai não quis registrá-la com o dele. Com auxílio da Defensoria Pública do Ceará, ambas lutam na Justiça por uma autorização para poderem adicionar sobrenomes.
Raquel foi deixada, ainda bebê, na porta da casa da feirante Maria de Fátima Costa Lima, no bairro de Sapiranga, periferia de Fortaleza.
Quando ela tinha três anos, Maria morreu após um infarto. Coube à filha de Maria, Rosilene Lima, 38, herdar a criação da menina —com quem mora até hoje.
"Minha mãe tinha entrado com o processo de adoção quando estava em vida. Mas parou tudo após a morte dela. Consegui apenas a certidão na Justiça, mas até hoje sigo lutando para conseguir formalizar a adoção e dar um sobrenome à minha filha", diz Rosilene.
Vergonha: 'O povo da escola ficava zoando'
Raquel estudou apenas até o sexto ano do ensino fundamental. Deixou a sala de aula aos 13 anos, quando engravidou. "Na época, eu tinha vergonha de não ter sobrenome. O povo da minha escola ficava zoando, eu não tinha pai", afirma ao UOL.
Sem um registro com sobrenome, ela não pode receber o Bolsa Família, não faz exame pelo SUS nem emite qualquer tipo de documento. Um histórico escolar, por exemplo, não teria validade legal.
Raquel conta que já escolheu os nomes completos dela e da filha. "Quero pôr Maria Raquel Costa Lima no meu. Na minha filha, Maria Raquelly Costa Lima", diz.
A filha até poderia ter tido um sobrenome em seu registro, mas o pai dela não quis. Em sua certidão, ficou apenas como Raquelly. Para ela, vai ser necessária uma outra ação com uma investigação de paternidade. Quando houver identificação comprovada do pai, deve haver a adição de mais um sobrenome.
Filha sem creche e sem remédio
A falta de sobrenome afetou diretamente a filha Raquelly recentemente. Primeiro, nunca conseguiu ser matriculada em uma creche. Depois, no posto de saúde, Raquel teve dificuldades para conseguir os remédios após ser atendida.
"Da última vez que fui, não quiseram me dar o remédio dela. Cheguei ao posto lá pelas 11h, com minha filha gripada, e só fui sair quase às 17h. Tive de explicar tudo várias vezes, mas a senhora do posto dizia que eu não tinha direito. Só aceitou quando mostrei que quem assinou o meu registro foi um desembargador", diz.
Mas ela acha que a saga pelo sobrenome terminará em breve. Com isso em mãos, sonha em voltar a estudar e concluir o ensino médio.
Eu quero fazer EJA [educação de jovens e adultos] assim que colocar minha filha na escola. Quero também procurar um trabalho."
Raquel
Mãe e filha catadoras
Raquel e Rosilene Lima trabalham catando recicláveis nas ruas de Fortaleza.
"Sou feirante e faço faxina, mas atuo mesmo com reciclagem. Saio com ela [Raquel], juntamos material por 15 dias e vendemos", diz, acrescentando uma reclamação pelos valores mais baixos. "A latinha de alumínio custa hoje R$ 6 o quilo, e a garrafa pet está R$ 35 cada quilo. Muito pouco", diz.
Rosilene diz que sempre teve dificuldades em conseguir os direitos básicos da filha. "Tinha escola que não aceitava botar ela para estudar porque não tinha um único responsável na certidão dela, mesmo eu dizendo que era a responsável. Só um colégio aceitou", afirma.
Mesmo com todos os problemas, Rosilene diz que adotar Raquel trouxe só alegrias para a família.
"Desde pequena, antes mesmo de a minha mãe falecer, ela me chamava de mãe também. Raquel é uma pessoa que me ajuda, é muito prestativa, não bota dificuldade em nada. No dia em que vou fazer faxina, se tiver feira, ela vai no meu lugar e passa até 16 horas trabalhando, se necessário."
Ação para recuperar direitos
A defensora pública Natali Pontes explica que a família conseguiu até hoje apenas fazer o registro de nascimento de Raquel e não formalizou a adoção. "Como não tinha os pais, ficou só Raquel", diz.
Sem sobrenome, Natali aponta que há várias dificuldades na vida cotidiana.
Ela não tem acesso a várias coisas pelo fato de não ter sobrenome, inclusive à Carteira de Trabalho. Então essas pessoas que a criaram buscaram a defensoria, e nós entramos com o processo de adoção para que elas possam adotar Raquel e regularizar a certidão de nascimento dela ao mesmo tempo."
Natali Pontes, defensora pública
Natali diz que casos como esse são extremamente raros. Ela nunca havia se deparado com algo similar.
"Se ela não fosse adotada, a gente teria que entrar com um processo solicitando a retificação do registro dela para ser incluído um sobrenome comum. Mas, como foi adotada, vai ter o sobrenome das pessoas que a criaram", completa.
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