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Letalidade policial cai com câmeras; especialistas pedem "mudança cultural"

Policiais militares mostram câmeras instaladas nos uniformes, em São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress
Policiais militares mostram câmeras instaladas nos uniformes, em São Paulo Imagem: Rubens Cavallari/Folhapress

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

29/01/2022 04h00

As mortes cometidas por policiais militares de São Paulo despencaram nos 18 batalhões que passaram a utilizar câmeras acopladas ao uniforme dos agentes. Dados obtidos pelo UOL revelam queda de 87% nos seis meses após a ampliação do programa Olho Vivo.

Entre junho e novembro do ano passado, os batalhões registraram 14 mortes por intervenção policial contra 110 nos seis meses anteriores à implementação do programa.

Ao contrário de outras versões, essas câmeras permitem gravar o turno completo do policial sem a necessidade de acionamento manual. A tecnologia também impede que o policial desligue a câmera durante a operação. Em caso de necessidade, a PM pode resgatar o arquivo e analisar as imagens.

O UOL pediu por meio de LAI (Lei de Acesso à Informação) o número de mortes e lesões corporais registradas nesses batalhões antes e depois da ampliação do programa.

Já no primeiro mês, em junho, nenhuma morte foi registrada, a primeira vez que isso aconteceu nesses batalhões desde maio de 2013, data com os dados mais antigos disponibilizados pela PM.

Embora as câmeras só tenham sido implementadas no meio do ano passado, as 110 mortes cometidas pelos 18 batalhões em 2021 (considerando até novembro) equivalem a 47% da média anual de 232 assassinatos nos sete anos anteriores.

As lesões corporais durante intervenção da polícia também caíram. Foram 16 casos nos seis meses após a adoção das câmeras, 38% menos dos que as 26 ocorrências registradas seis meses antes.

Especialistas em segurança pública afirmam que as câmeras trazem "transparência" para a ação do policial, que se sente inibido em agredir ou matar suspeitos. Mas alertam que ainda é preciso avançar no combate à violência policial.

"Ainda é pouco"

Conselheira federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) por São Paulo, Silvia Virginia Silva de Souza afirma que o uso da tecnologia intimida a ação da polícia, escancarando a violência das tropas.

"A queda nos homicídios após o uso das câmeras é uma boa notícia, mas também uma espécie de comprovação de que a abordagem policial é inadequada no Brasil", afirma.

Ela diz que a adoção das câmeras ainda é insuficiente e defende "uma mudança cultural na formação policial".

A Polícia Militar no Brasil remete à chegada de dom João 6º ao Brasil [em 1808]. Sua missão era buscar escravos fugitivos. Essa essência permanece a mesma."
Silvia Virginia Silva de Souza, da OAB-SP

"Que na academia eles [policiais] aprendam sobre desigualdade social, racismo cultural e institucional", afirma. "Também é preciso mudança na formação, no salário, nas condições e horas de trabalho do policial."

Unidades da PM participantes do Programa Olho Vivo - Carol Malavolta/UOL - Carol Malavolta/UOL
Imagem: Carol Malavolta/UOL

Doria mudou de posição

"A redução na letalidade policial é sem dúvida uma boa notícia", avalia Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "Os dados eram alarmantes. Tão altos que a gente tinha pouca esperança de que fossem revertidos."

Ele diz que o uso das câmeras inibe a ação violenta de maus policiais, "trazendo transparência ao trabalho da PM". Ele atribui a adoção do programa Olho Vivo a uma mudança de postura do governador João Doria (PSDB), que em 2019 chegou a dizer que pagaria os "melhores advogados" aos PMs que matassem suspeitos.

"Quando o Doria percebe que o clima político estava mudando no Brasil e deixa de ser o Bolsodoria [referência ao alinhamento com o presidente Jair Bolsonaro (PL) na campanha de 2018], ele toma uma série de medidas, como mudar o comandante da PM", diz o especialista.

A troca do coronel Marcelo Vieira Salles pelo também coronel Fernando Alencar Medeiros, em março de 2020, reafirmava a mudança nos rumos da segurança pública do estado, arranhada desde que uma ação malsucedida da PM em um baile funk na favela Paraisópolis, na zona sul, terminou com nove mortos em dezembro do ano anterior.

"Depuração da PM"

Após a troca de comando, as mudanças internas começaram em maio, quando uma escalada de mortes em confrontos com a polícia culminou em 102 mortos. O Comando da PM, então, criou a Comissão de Mitigação de Não Conformidades para, como ela própria diz, "depuração interna", levando policiais criminosos "a julgamento na Justiça comum e militar e demitindo ou expulsando os culpados".

Alcadipani, do Fórum de Segurança, diz que a adoção de câmeras no uniforme veio acompanhada de outras medidas, como o uso de "armas de choque, que também reduziu a letalidade policial".

Há mais de 10 mil armas de incapacitação neuromuscular (como armas de eletrochoque) em poder da PM paulista, o que faz dela a terceira força policial utilizando o equipamento no mundo, atrás apenas de Nova York e Londres, segundo a PM.

O resultado é que o número de mortos em ações da PM caiu 44% no último ano, considerando todos os batalhões do estado, inclusive os que não usaram a câmera no uniforme.

Câmeras filmaram homem rendido sendo morto

No primeiro caso solucionado com a ajuda das novas câmeras, um PM foi flagrado matando um homem desarmado em setembro do ano passado em São José dos Campos (a 97 km da capital).

As imagens revelaram que, após perseguição policial, o suspeito foi alvejado pelo PM enquanto se preparava para sair do carro já com as duas mãos na cabeça. A Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo concluiu as investigações em dezembro.

Câmera - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
Câmera flagra momento em que suspeito coloca as mãos da cabeça antes de ser morto por um PM
Imagem: Reprodução/TV Globo

O que diz a PM

Ao UOL, a PM afirma que as câmeras "fazem parte de um vasto conjunto de medidas que objetivam reduzir a necessidade de uso da força".

A redução é resultado da qualidade do treinamento e do emprego técnico de seus equipamentos e recursos."
Fernando Alencar Medeiros, Comandante Geral da PM, em nota

A PM não informou o critério para a escolha dos 18 batalhões nem quando pretende estender o programa a todo o estado, mas afirmou haver 3.000 câmeras em operação e que outras 7.000 estão "sendo recebidas e distribuídas, completando todos os batalhões da capital e região metropolitana".