Fome é usada como punição em presídios do Pará, diz defensora pública
"Se você está com fome e te dão comida estragada, o que você faz: você come ou passa fome?."
O questionamento é de A.J., homem negro que cumpriu nove meses em regime fechado no Centro de Recuperação Penitenciário de Santa Isabel, na região metropolitana de Belém. Desnutrido, com as costelas à mostra e o cabelo raspado, o rapaz foi fotografado pela irmã no dia em que retornou para casa com o corpo refletindo a perda de 24 kg.
O presídio em que A.J. ficou recluso é o mais lotado do Pará. As vistorias foram realizadas pelo Copen (Conselho Penitenciário do Pará) e pela defensoria pública do estado em cinco unidades prisionais, entre novembro de 2022 e junho de 2023. Há um número alto de denúncias de violações de direitos humanos feitas por familiares e pessoas presas.
Os inspetores verificaram que há casos de desnutrição entre os presos. Segundo os relatórios, as marmitas oferecidas aos presos nas unidades vistoriadas pesavam cerca de 300 gramas — metade do peso ideal. À Alma Preta, a Seap-PA (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará) afirmou que "todas as refeições são orientadas por nutricionista, com peso padrão de 600 g".
Para a defensora pública, Anna Izabel Santos, presidente da comissão de inspeção penal no estado, o fato demonstra que a fome é usada como estratégia nos presídios: "tortura não é apenas bater".
São muitas as violações de direitos humanos: uso excessivo do spray de pimenta; o uso de alas específicas sem câmeras nas quais os presos eram espancados, e a retirada total da alimentação como forma de punição, ou da farinha, alimento usado pelos detentos principalmente quando eles estão com muita fome." Anna Izabel Santos, defensora pública de execução penal
Outro lado: Segundo a CGP (Corregedoria Geral Penitenciária), vinculada ao governo estadual, há 33 procedimentos de denúncias em presídios instaurados no estado, em fase de instrução, e sendo apurados de forma "enérgica". Já a Seap afirma que "todas as denúncias que contradizem os protocolos desta secretaria serão rigorosamente apuradas".
O segundo maior massacre em presídios do país
O Pará possui 53 casas penais nas quais estão 19.818 presos — a capacidade é para 13.728, de acordo com dados da Seap de dezembro de 2022. Do total, 90% são homens pretos e pardos com idade entre 18 e 26 anos.
Até 2019, familiares podiam levar fardo de arroz, feijão e outros alimentos aos presos. Porém, isso mudou após o Massacre de Altamira, quando 58 pessoas foram mortas dentro do antigo Centro de Recuperação Regional de Altamira. Foi o segundo maior massacre em presídios no país, atrás apenas do Carandiru, quando 111 detentos foram mortos em 1992, em São Paulo.
Logo após o massacre, a FTIP (Força de Intervenção Penitenciária), ligada ao governo federal, assumiu o controle dos presídios paraenses a pedido do governador Heder Barbalho (MDB). Entre as medidas tomadas estava a proibição da entrada de alimentos por meio dos familiares, que foi mantida até hoje, mesmo após a saída da FTIP, em meados de 2020. As refeições são fornecidas exclusivamente pela Seap.
No período em que permaneceu no estado, a FTIP foi denunciada por tortura, dentre elas, de mulheres que foram obrigadas a se sentar em formigueiros, de homens empalados com cabo de armas e de privação de comunicação entre as pessoas encarceradas e seus familiares.
Até a Comissão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) foi impedida de entrar nas casas penais. Os detalhes estão no relatório "Crise no sistema carcerário do estado do Pará (2019-2021)", desenvolvido por diversas entidades, entre elas a OAB — veja aqui.
Inspeções apontam torturas e falta de higiene
Dentro do cárcere existe um termo chamado "procedimento". Quando o preso é informado de que é necessário seguir a determinação, ele precisa imediatamente ficar imóvel e em posição fetal.
A gente tem que fazer o que os caras mandam na hora em que mandam. Ficar nu de cócoras, ficar nu sentado no chão, passar o dia inteiro de cueca. Não tem exatamente um motivo, é quando os caras estão a fim." A.J., ex-presidiário
A prática é confirmada pela defensora pública Anna Izabel Santos.
Tivemos o caso de um senhor que tinha a perna amputada e ainda assim era obrigado a ficar em procedimento." Anna Izabel Santos
As câmeras de segurança instaladas nos presídios paraenses poderiam ser uma forma de apurar as denúncias de tortura, segundo a defensora pública, mas os equipamentos armazenam imagens apenas por poucos dias. "Fica inviável apurar", diz.
Por nota, a Seap diz que as câmeras "funcionam regularmente" e que "as imagens armazenadas são utilizadas pela Corregedoria nas investigações de denúncias, quando reportadas".
Os relatórios das inspeções também apontam para violações de direitos nos banho de sol e no fornecimento de materiais de higiene — os presos devem receber uniforme, xampu, desodorante, creme de barbear e lâmina. Roupas íntimas e toalhas são fornecidas pelas famílias. "Em tese, a iniciativa é boa, mas na prática há muitos problemas", pontua Anna Izabel.
Conforme vistoria realizada no presídio de Vitória do Xingu, em abril deste ano, os uniformes dos presos são trocados a cada três dias, enquanto que, no Presídio Estadual Metropolitano de Marituba (PEM I) e na Cadeia de Jovens e Adultos (CPJA), as pessoas ficam até duas semanas com o mesmo uniforme dentro das celas. "É um cheiro insuportável de cachorro morto. A Seap tomou para si essa responsabilidade, mas, ao que tudo indica, não está dando conta", diz.
Sobre o banho de sol, apesar de em 2020 o então ministro do STF Celso de Mello ter determinado o mínimo de duas horas por dia, os inspetores apontam que em algumas unidades ele acontece apenas uma vez por semana, ou até uma vez ao mês.
Outro lado: a Seap nega a violação e diz que o banho de sol ocorre de "forma regular em todas as unidades prisionais" e que obedece aos "padrões de segurança do manual de procedimentos da instituição".
O órgão disse ainda que oferece quatro refeições aos presos: café da manhã, almoço, jantar e uma ceia.
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