Laudo omitiu marca de cigarro em jovem torturado e morto pela PM no Guarujá
O laudo necroscópico de Felipe Vieira Nunes, 30, morto com sete tiros por dois PMs da Rota em 28 de julho, durante as ações da Operação Escudo, omitiu queimaduras de pontas de cigarro nos braços. O documento foi obtido pelo UOL e assinado pelo médico legista José Eduardo de Menezes Sartori, do EPML (Equipes de Perícias Médico-Legais) da Praia Grande.
A reportagem teve acesso a algumas imagens de Felipe morto e as enviou para dois peritos, que constataram que as marcas encontradas no braço do rapaz eram muito similares a queimaduras de cigarro.
"Se ele não apareceu no laudo e ele existe, o laudo não cumpriu com as exigências legais que determinam que todo elemento de interesse pericial ou ferimentos no corpo têm que ser obrigatoriamente relatados", afirma o perito forense Eduardo Llanos, que analisou as imagens e o laudo a pedido da reportagem.
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O UOL entrou em contato com Sartori no domingo (20), mas ele não respondeu às mensagens enviadas por WhatsApp e email até a publicação deste texto.
A Secretaria da Segurança Pública emitiu nota afirmando que "os laudos oficiais elaborados pelo Instituto Médico Legal (IML) foram executados com rigor técnico, isenção e nos termos da Lei. Em nenhum deles foi registrado sinais de tortura ou qualquer incompatibilidade com os episódios relatados".
Na noite em que foi morto, Felipe havia saído de casa para comprar cigarro e comida. Testemunhas afirmaram à família que viram o vendedor ser abordado e arrastado para dentro de casa e que, depois, ouviram seus gritos de dor e pedidos de socorro. Dos 7 disparos que atingiram Felipe, 5 o encontraram em pé, a pelo menos 40 centímetros de distância.
"É sempre necessário que se entenda de que existem mil formas de simular um fato a não ser por alguém que tenha filmado. Ou seja, se não colocou [a informação da queimadura por cigarro], nós podemos ter, neste fato, uma possível tortura e, posteriormente, disparos que não permitem deixar vestígios a curta distância", complementa Llanos.
Contraprovas em vídeos e no WhatsApp
Logo após a morte de Felipe, moradores da Vila Baiana registraram, em vídeo, que a cena do crime foi alterada pelos policiais militares envolvidos na ocorrência. As câmeras corporais dos PMs estariam quebradas.
A gravação dos moradores mostra o corpo do vendedor de açaí sendo retirado do camburão de uma viatura, fora da viela onde os PMs disseram que ocorreu o confronto e sendo colocado dentro de uma ambulância. No boletim de ocorrência, a versão dos PMs era outra: ele foi socorrido diretamente pelo Samu. As testemunhas que presenciaram a situação e conseguiram gravar tiveram de sair da cidade, por ameaças que sofreram dos PMs nos dias seguintes.
A reportagem ainda teve acesso a um outro vídeo, também gravado por moradores da Vila Baiana logo depois da morte de Felipe, que mostra a casa do vendedor com seus chinelos ensanguentados, marcas de sangue — no chão e na parede — e uma telha despedaçada, além de vidros estilhaçados. Não houve nenhuma perícia no local.
Nenhuma imagem de câmeras corporais relata como foi a dinâmica de toda a ação que culminou nessa morte.
No hospital, os familiares ouviram dos funcionários do local que todas as coisas dele estavam com os policiais que o levaram até lá. Questionados, os policiais teriam dito que Felipe não estava com nada. Uma foto registrada no necrotério, porém, além de mostrar as queimaduras provocadas por cigarros e as marcas de tiros, identificou a chave do carro do vendedor: ela estava precisamente ao lado do rosto de Felipe, na maca. Ninguém sabe onde a chave está.
De acordo com a versão oficial, Felipe morreu às 22h52 — no laudo do EPML da Praia Grande consta que o óbito em trânsito de Felipe aconteceu às 21h43. O WhatsApp da vítima, no entanto, mostra que a última visualização no aplicativo ocorreu à 0h16. "O celular dele tinha senha. Como ele acessou o celular depois de morrer? Ou como passou a senha no meio de um confronto?", questiona uma familiar. Ninguém sabe onde o celular está.
A versão documentada
Na documentação médica assinada por Rosária Maria da Silva, que atendeu a ocorrência no local e acompanhou Felipe até a UPA Enseada, consta que o rapaz deu entrada na unidade de pronto atendimento após ser vítima, sete vezes, de "disparos em via pública", o que não condiz com a versão apresentada pelos próprios PMs envolvidos e por um vídeo obtido pela reportagem que mostra que os tiros ocorreram dentro do barraco.
Para a Polícia Civil, dois PMs da Rota afirmaram que dispararam nove vezes contra Felipe para revidar três tiros supostamente direcionados por Felipe contra eles. Os PMs disseram que estavam em patrulhamento quando viram Felipe mudar repentinamente de direção em uma viela e colocar a mão na cintura, assim que ele observou a chegada do carro da Rota no local.
Os PMs afirmaram que iniciaram uma perseguição e disseram ter visto Felipe entrar em um barraco. Ao chegar próximo do local, os policiais disseram que Felipe iniciou os disparos. Então, o sargento André Felipe Quintino Danielli, 41 anos, afirmou ter disparado seis vezes, com sua pistola Glock, para se defender. O soldado Rodrigo França Lourenço, 31 anos, disse ter disparado mais três vezes também com uma pistola Glock.
"O agressor foi alvejado e desarmado. Em sua posse, fora localizado uma pistola preta, calibre .380 ", depuseram os policiais. Em vistoria, feita pelos próprios PMs, teriam sido encontrados três estojos vazios calibre .380, o que confirmaria a tese apresentada. Os policiais ainda disseram que havia com Felipe uma mochila contendo 526 porções de maconha.
As câmeras corporais do Guarujá
Em 7 de agosto, a PM afirmou à imprensa que o MP teve acesso às filmagens de 7 das 16 ocorrências com mortes nos primeiros dias da Operação Escudo, no Guarujá. Nove dias depois, a Promotoria informou que apenas três imagens mostravam confrontos.
"O Ministério Público precisa responsabilizar o comando da Polícia Militar se, de fato, ficar provado que policiais que atuam em batalhões que usam câmeras acabaram indo para a operação sem câmera. Quando um PM sai para o turno de serviço do batalhão, se ele está num batalhão que usa câmera corporal, ele só pode sair com a câmera no fardamento. Se o policial saiu sem câmera, isso significa que o comando foi conivente ", afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A reportagem pediu à assessoria de imprensa da SSP (Secretaria da Segurança Pública), na tarde de sábado (19), entrevistas com o secretário da Segurança, Guilherme Derrite, com o comandante da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, e com o delegado-geral da Polícia Civil Artur José Dian. Os pedidos de entrevista não foram atendidos. A SSP enviou nota.
"Dos 19 casos de reação à ação policial que resultaram em morte, 11 envolveram policiais de batalhões que possuíam câmeras. Todas as imagens foram compartilhadas com os órgãos de controle, incluindo a trilha de auditoria de quatro câmeras que tiveram a bateria descarregada ao longo do turno de serviço. A designação das equipes para o apoio às ações na Baixada Santista foi pautada por critérios técnicos e operacionais, de forma a garantir o policiamento preventivo em todo o estado, e não pela disponibilidade de materiais ou equipamentos."